Política 50 anos do golpe

Os filhos que sumiram depois que foram retirados das mãos de guerrilheiros do Araguaia

Comissão sobre Mortos e Desaparecidos Políticos entrega o resultado da contraprova do exame de DNA à família do guerrilheiro Antonio Theodoro de Castro

Algo em comum: Sandra Castri e Lia, possível filha de guerrilheiro
Foto: Album de família
Algo em comum: Sandra Castri e Lia, possível filha de guerrilheiro Foto: Album de família

SÃO PAULO — Lia Cecília da Silva Martins, de 39 anos, faz parte de mais uma história a ser desvendada sobre a Guerrilha do Araguaia: a dos filhos de guerrilheiros mortos pelo Exército. Na próxima terça-feira, a Comissão sobre Mortos e Desaparecidos Políticos entrega o resultado da contraprova do exame de DNA à família do guerrilheiro Antonio Theodoro de Castro, o Raul, desaparecido em 1973, que seria o pai de Lia.

Se o resultado for positivo — em 2010, exames deram 90% de compatibilidade genética —, será o primeiro documento oficial a derrubar a tese de que não passa de lenda a história de que crianças foram tiradas de seus pais e desapareceram.

— Mesmo dentro de uma guerra existe amor. E eu sou filha deste amor — diz Lia.

Mãe desconhecida

O parto teria sido feito pelo pai. Lia teria sido tirada dos braços da mãe, que foi executada. O soldado teria poupado o bebê. Entregue a um orfanato em Belém por um delegado e um soldado, a menina foi adotada. O mateiro José Maria Alves da Silva, o Zé Catingueiro, foi quem confirmou pela primeira vez a existência da filha do guerrilheiro Raul a uma das irmãs dele, Mercês Castro.

A contraprova do exame de DNA conta apenas metade da história de Lia. Falta saber quem é a mãe. Mercês descobriu que o irmão viveu no Araguaia com uma jovem que não falava português e não seria guerrilheira ou camponesa.

O GLOBO ouviu relatos sobre outros quatro filhos de guerrilheiros que teriam sido retirados dos pais, além de duas filhas de uma camponesa que se envolveu com o guerrilheiro Osvaldo Orlando da Costa, o Osvaldão. Apenas um deles teria sido entregue pela própria mãe a um padre.

Aos 77 anos, Zé Catingueiro disse ao GLOBO ter certeza da existência de mais uma menina, que teria, em 1974, entre 1 e 2 anos de idade.

— A mais branca era a mais nova. A outra era um pouco mais morena. A do Raul foi para São Geraldo (São Geraldo do Araguaia). A do Zé Carlos foi tirada para Marabá — diz Catingueiro.

Ele acrescenta que soube de outras duas ou três crianças “produzidas” por guerrilheiros do destacamento B, mas que não conheceu.

— Todas as crianças foram pegas vivas. Foram tiradas para outro lugar. Os grandes sempre deram graças a Deus de não terem matado nenhum inocente — conta, referindo-se aos comandantes das tropas.

Catingueiro acha difícil saber exatamente quantas eram e o que aconteceu com elas.

— Tinha soldado de quartel de todo o Brasil — resume.

“A do Zé Carlos”, como se refere Zé Catingueiro, seria uma filha de José Carlos, o codinome de André Grabois, fora do casamento. Ele foi casado com Criméia Almeida, com quem teve um filho, João Carlos Grabois. Ela acredita que a versão de Catingueiro serve apenas para criar mais tensão.

— É sempre assim. Quando dão alguma informação é para criar dúvidas, clima de tensão. Tive meu filho na prisão, e eles me ameaçavam, diziam que iam ficar com ele. Mas, mesmo se não acharem mais nenhuma criança, a Lia é uma prova de que elas existiram — diz Criméia.

Irmãos levados de Araguaina

Outro caso quem conta é Antônio Viana da Conceição, que tinha 6 anos quando sua mãe, Maria Vieira da Conceição, a Maria Castanhal, foi morta, e os irmãos levados de Araguaina — Ieda, a mais velha, o bebê Carlândia, de 6 meses, e Giovani, de 3 anos, este último apontado como filho do guerrilheiro Osvaldo Orlando Costa, o Osvaldão.

— Sumiu, sumiu. Acabou. Quem morreu, acabou — diz Antônio, que escapou de ser levado porque vendia macaúba na rodoviária da cidade.

A lenda dizia ainda que a guerrilheira Dinalva Teixeira, a Dina, havia sido morta grávida. Uma índia carajá, que acompanhava os guerrilheiros, relatou em 2009 a Mercês Castro que a criança era um menino e nasceu em Itupiranga, cerca de cinco meses antes da morte da mãe. Dina teria entregado o filho a um padre. O pai seria Gilberto Olímpio Maria, o Pedro, com quem Dina dividiu o comando do destacamento C. Os dois foram mortos em 1973.

Uma outra criança seria o filho do guerrilheiro Custódio Saraiva Neto, o Lauro. O bebê teria sido levado para Manaus. Não há detalhes sobre a mãe.

Giles Gomes, coordenador da Comissão sobre Mortos e Desaparecidos Políticos da Secretaria de Direitos Humanos, afirma que o único caso concreto de criança desaparecida durante a Guerrilha do Araguaia é o de Lia, que está sendo investigado:

— Não recebi nenhum outro pedido formal para investigar desaparecimento de crianças.

A Comissão Nacional da Verdade também informou que o caso de Lia é o único de criança desaparecida apurado formalmente.