Nem seca, nem enchente. O risco do processo de extração industrial para trabalhadores de uma das maiores minas de urânio da África são infecções pulmonares e câncer. Segundo o site do jornal britânico “The Guardian”, um estudo ao qual a equipe de reportagem teve acesso exclusivo, baseado em questionários de trabalhadores atuais e antigos da mina da Rio Tinto na Namíbia, mostra que a maioria dos afetados não havia sido informada sobre os riscos que corria. A história é antiga, vem dos anos 70, quando a mina foi instalada com o objetivo, segundo o site, de fornecer matéria-prima para bombas e energia nuclear às forças militares dos Estados Unidos e do Reino Unido.

O estudo não dá endereços ou nomes. Pesquisadores teriam ouvido pessoas que trabalharam lá em décadas passadas e dão conta de “muita gente” doente, “muitas” mortes por câncer ou outras doenças que teriam contraído durante o trabalho. A Rio Tinto foi ouvida e se defende, dizendo que a saúde e a segurança de seus funcionários são prioridade na gestão. “Controles eficazes asseguram que as exposições de radiação são mantidas bem abaixo do nível padrão”, disse um porta-voz da empresa, que tem 69% da mina: o governo do Irã tem outros 15%.

A notícia chamou minha atenção porque é uma chance de refletir sobre uma questão das mais importantes: as relações de trabalho numa era de negócios multinacionais e globalizados. Das fábricas de roupas de Bangladesh, Indonésia, aos violentos campos de petróleo na Nigéria, são muitos os desafios para se regular esta relação delicada.

Criada no Tratado de Versalhes, em 1919, a Organização Internacional do Trabalho (OIT) tem como missão fazer justiça social e olhar com lupa, sobretudo, as questões referentes a trabalho escravo, infantil e tráfico de pessoas. Estes são crimes, flagrantemente passíveis de punição. Mas há outros problemas menos acessíveis, envolvendo trabalhadores e 5.100 companhias em todo o mundo, que deixam grupos ligados aos direitos humanos numa espécie de beco sem saída.

Em 2005, o então secretário das Nações Unidas, Kofi Annan, deu ao professor de Direitos Humanos de Harvard John Ruggie a tarefa de pesquisar sobre essa relação e criou um setor só de Negócios e Direitos Humanos, cujo mandato acabou em 2011. O trabalho de Ruggie e equipe foi concentrado no livro “Just Business – Multinational Corporations and Human Rights” (Ed. Norton), ainda sem tradução no Brasil, lançado em 2013. Neste site é possível conhecer mais sobre essa história.

A notícia do “The Guardian” me fez voltar ao livro de Ruggie, que deixou como legado uma espécie de princípios a serem seguidos por governos e empresas. No livro ele lembra que a liberação do comércio, desregulações domésticas e privatizações mundo afora que passaram a ocorrer nos anos 90 fortaleceram os direitos das multinacionais. E revela um dado nada desprezível: 94% de todas as regulações nacionais relacionadas ao investimento estrangeiro que foram modificadas na década de 1991 a 2001 tinham como objetivo facilitar a vida das empresas. Afinal, como frear o progresso com leis a favor dos direitos humanos?

Aqui vale um parêntesis: hoje mesmo li na reportagem do “The Wall Street Journal Americas”, reproduzida pelo “Valor Econômico”, que um dos motivos para a queda no crescimento da Índia, que anda abalando o mercado, é a falta de indústrias. Há vários motivos para que as empresas não queiram instalar suas fábricas num país até então tão promissor, e as rígidas leis trabalhistas são apontadas como um desses obstáculos.

Pesquisei rapidamente e o que consegui saber é que na Índia não se pode demitir nenhum trabalhador em fábricas com mais de 100 operários sem o consentimento do Estado. É, de fato, uma invasão na gestão. Mas há outros detalhes interessantes, como o da rigidez de dias e horas trabalhados: lá ninguém trabalha mais de dez dias seguidos sem descanso e o trabalho aos domingos precisa ser bem remunerado.
O que ocorre é que as empresas, na maioria das vezes, até se propõem a fazer tudo direito, mas não querem o Estado como controlador de suas ações. Claro que isso não é a regra, há exceções. Além disso, num sistema que privilegia o desenvolvimento a todo custo, é importante rever a causa, não apenas o sintoma.

Voltando ao livro de Ruggie, o professor lembra que há várias maneiras de as empresas influenciarem os estados para poderem agir livremente. Elas podem processar o governo que as acolheu se seu investimento for afetado negativamente por questões administrativas ou legislativas. Elas podem, inclusive, ameaçar retirar seu investimento caso não concorde com alguma coisa.

Por outro lado, alerta Ruggie, a performance das empresas multinacionais pode estar também vulnerável a um conjunto diverso de mecanismos que não afeta os estados. Desde a adaptação de seus quadros à legislação do país onde se instalam até o entendimento de uma cultura diferente, elas podem ter sua marca exposta negativamente a investidores e consumidores. É uma relação muito delicada que se sustenta pelo retorno financeiro das operações.

Diz Ruggie: “Em resumo, eis o que eu descobri quando pesquisei os negócios internacionais e os direitos humanos desde o início do meu mandato: uma arena profundamente dividida, com falta de conhecimento, normas e limites claros compartilhados.  Sistemas governamentais frágeis com relação aos direitos humanos e empresas igualmente; sociedade civil sensibilizada através de campanhas contra as empresas, e algumas vezes também colaborando, com pessoas mais dispostas a melhorar suas condições sociais.”

No fim do mandato, Ruggie deixou os princípios e algumas sugestões de ações. Há um grupo de trabalho que faz visitas a países com problemas para tentar ajudar a resolvê-los e organiza um fórum para examinar as questões encontradas em implementar os princípios orientadores. Isso é bom.

Afinal, voltando às questões dos trabalhadores que adoeceram por conta da mina de urânio, é importante lembrar que foi na década de 70 que se fez as primeiras associações entre a fumaça que saía das chaminés e os problemas de saúde nas pessoas. Os operários afetados trabalhavam lá nessa época. Uma era em que muitos ainda acreditavam que os recursos naturais eram infinitos e que nada podia ser empecilho ao desenvolvimento do mundo.

Hoje, com todo o conhecimento que circula na internet, nas redes sociais, inclusive a partir de experiências trágicas, não cabe mais a desinformação. E as empresas que não quiserem ter cuidados com os direitos humanos certamente vão ter a imagem manchada, o que não é nada bom para atrair investidores.