Brasil Conte algo que não sei

Laurie Nathan, mediador de conflitos: ‘Ensinei minha filha a negociar aos 2 anos’

O especialista e professor da Universidade de Pretória, na África do Sul, está lecionando na Escola de inverno da Unidade do Sul Global para Mediação, na PUC-Rio

Laurie Nathan é especialista e professor da Universidade de Pretória.
Foto: Leo Martins /
O Globo
Laurie Nathan é especialista e professor da Universidade de Pretória. Foto: Leo Martins / O Globo

“Cresci na África do Sul durante o Apartheid, alheio à realidade desigual do país. Na faculdade, entrei para um movimento de oposição ao regime e, quando o sistema de discriminação racial acabou, me tornei um pacifista. Já atuei em guerras civis de diversos países da África, como Sudão e Mali, e no Oriente Médio”

Conte algo que eu não sei.

Tem algo que você sabe, mas pensa que não sabe. Quando você está num conflito com sua família, seu chefe ou seus amigos, você fica preso. Quando você pensa a respeito, sabe o que significa. Mas quando está preso num conflito e não consegue se desatar e está cheio de raiva, não percebe esta situação. Como mediador, vejo isso com frequência. Quando se percebe isso, fica mais fácil resolver a questão.

Mick Jagger disse que a gente não pode conseguir sempre tudo o que quer, mas que se tentar, pode conseguir algo de que precisa...

Sim. Você pode não conseguir tudo o que quer, mas pode conseguir algo do que quer em troca de ceder um pouco. O importante é chegar a uma solução satisfatória para os dois lados. Isto vale para guerras civis e para dentro de casa.

O mesmo conceito de mediação se aplica em casa e nas negociações de paz para acabar com guerras civis?

A mediação de conflitos vale para o cotidiano. Eu ensinei minha filha a negociar aos 2 anos. Eu dizia “Rebecca, você não vai almoçar sorvete”. Ela ameaçava chorar e eu falava “Não vamos brigar, me ofereça um trato”. Aí ela propunha, por exemplo, comer uma colher de comida para cada colher de sorvete. Então eu topava. Claro, há certas coisas inegociáveis, como dar a mão para atravessar a rua ou usar cinto de segurança.

Mas não é tão simples assim em negociações de conflitos entre rebeldes e o governo do Sudão, por exemplo...

A maior dificuldade nesses casos é lidar com pessoas que querem se matar e que veem você, o mediador, como um obstáculo ou algo irrelevante. Para iniciar o trabalho, é preciso consenso entre as partes sobre a importância de se chegar a um acordo. Mas eles não querem isso. Só querem matar o outro. Muitas vezes, estão apenas fingindo que querem negociar.

Como você percebe a farsa?

Quando as partes dizem “não” para toda e qualquer oferta de acordo, fica claro que estão lá só para não serem vistos como vilões e inimigos da paz pela comunidade internacional.

Existe uma estratégia para lidar com esses dilemas?

Não adianta pregar sobre a paz mundial ou sobre o amor ao próximo. É ingenuidade. Se disser que é para o bem do povo, eles dirão que sabem o que é melhor para seu povo. O mais importante, então, é fazer as partes perceberem que estão diante de um impasse, que todos os lados perdem com a continuação do conflito. Sem um impasse, não há negociação.

O que você diria para os líderes de Israel e Palestina chegarem a um acordo?

Não vejo uma solução neste caso. Porque Israel não está sofrendo o bastante para querer um acordo satisfatório para os dois lados. Um dos maiores problemas nessa questão é a assimetria de poder militar. Somente os Estados Unidos podem fazer algo a respeito, reduzindo o apoio a Israel. Aí, talvez, eles aceitem negociar. Já trabalhei em Ramallah e na Faixa de Gaza. Nunca fui pessimista em relação a um conflito, mas não vejo como essa questão pode ser resolvida.

Que outros fatores tornam esse conflito tão complexo?

Como mediador, a última coisa que você quer ouvir é “Deus quer assim”. Não importa se o envolvido é católico, judeu ou muçulmano. Quando as pessoas dizem lutar ao lado de Deus, tudo fica mais complicado.