Política Impeachment

‘Pedalada fiscal’ é crime de responsabilidade?

Base legal para pedido de afastamento de Dilma divide juristas, ex-ministros e professores de Direito
O jurista Ives Gandra Martins e o professor emérito da USP Dalmo Dallari Foto: Montagem sobre fotos de Eliária Andrade e Lalo de Almeida/Folha Imagem
O jurista Ives Gandra Martins e o professor emérito da USP Dalmo Dallari Foto: Montagem sobre fotos de Eliária Andrade e Lalo de Almeida/Folha Imagem

RIO — Qual ato de um presidente da República é crime de responsabilidade para levá-lo ao impeachment? O tema dividiu opiniões de professores de Direito, juristas e ex-ministros ouvidos pelo GLOBO. Para parte dos especialistas, as “pedaladas fiscais” — o atraso de repasses a bancos oficiais por parte do governo, obrigando as instituições a usarem recursos próprios para pagar benefícios como Bolsa Família — são crimes orçamentários, um dos tipos de crime de responsabilidade previstos em lei. Segundo essa interpretação, a assinatura de decretos autorizando créditos suplementares, sem respaldo no Orçamento aprovado pelo Congresso, também configura crime de responsabilidade. Parte dos juristas, porém, avalia que as medidas elencadas no pedido de impeachment que tramita na Câmara não se enquadram nessa definição.

A lei 1.079/50 detalha os crimes de responsabilidade e foi recepcionada pela Constituição de 88, que fala nesses crimes em seu artigo 85, mas sem detalhá-los. Nela, a lista é dividida em crimes “contra a existência da União”, “contra o livre exercício dos poderes constitucionais”, “contra o exercício dos direitos políticos, individuais e sociais”, “contra a segurança interna do país”, “contra a probidade na administração”, “contra a Lei Orçamentária”, “contra a guarda e legal emprego dos dinheiros públicos” e “contra o cumprimento das decisões judiciárias”.

É nos trechos sobre a questão orçamentária que se baseia boa parte dos argumentos a favor do pedido de impeachment.

— Há fundamentação jurídica, porque o Executivo não pode praticar atos que precisam de autorização do Legislativo sem essa autorização. Isso atenta contra o princípio da separação dos Poderes, rompe o equilíbrio entre eles. Ninguém tem atribuições ilimitadas — afirma o jurista Celio Borja, ex-ministro da Justiça.

O jurista Ives Gandra Martins também sustenta a existência de crime de responsabilidade:

— A presidente Dilma estava gastando o que não tinha em plena campanha (eleitoral) e pegou dinheiro proibido nos bancos como se fosse do governo. O impeachment está caracterizado em diversos elementos — afirma.

Além da base jurídica, porém, o professor de Direito Constitucional da PUC-SP Marcelo Figueiredo pondera que é preciso analisar o contexto em que os atos foram cometidos.

— Dizer que “não houve crime” (de responsabilidade) é uma defesa fraca. Do ponto de vista jurídico, o decreto que permite gastos sem autorização do Congresso é ato assinado pela presidente que pode entrar como crime orçamentário. Agora, é preciso haver juízo político. Esse gasto não autorizado foi para o governo cumprir obrigações constitucionais? Foi com boa ou com má-fé? — analisa.

Para o professor emérito da USP Dalmo Dallari, os decretos assinados por Dilma não são crimes orçamentários, apenas medidas contábeis administrativas:

— Não foram gastos ilegais, para beneficiar a própria Dilma, amigos ou terceiros. Isso também pode ser dito das “pedaladas”: apenas se mudou a data de transferência de recursos a bancos. Ninguém se apoderou do dinheiro público, que continuou com uso público. As “pedaladas” não se enquadram em nenhuma das hipóteses previstas em lei.

O jurista Fabio Konder Comparato, professor da USP, também contesta a existência de crime de responsabilidade:

— Quando a União deixa de fazer repasses para certas entidades, para que elas usem recursos delas e recebam depois, dizer que são crimes orçamentários é altamente discutível.

Já o ex-presidente do Supremo Tribunal Federal Carlos Velloso observa crime de responsabilidade na conduta de Dilma e refuta a tese de que não haveria ilegalidade, pois o ano não acabou — haveria, portanto, tempo para a correção das distorções fiscais — e as contas de 2015 do governo ainda não foram julgadas:

— O crime se consuma no momento em que estão compreendidos seus elementos. Não é possível prorrogar essa consumação. Seria a mesma coisa que dizer: “ele furtou, mas, se deixasse mais um pouco, ele devolveria”. Isso não é condizente com o Direito.

ACUSAÇÕES DE CORRUPÇÃO SÃO MAIS FRÁGEIS, DIZEM ANALISTAS

A existência de crime de responsabilidade da presidente Dilma Rousseff em função da corrupção na Petrobras e da compra da refinaria de Pasadena — que causou prejuízos à empresa e foi concluída quando ela presidia o Conselho de Administração — provoca mais resistências no meio jurídico do que as questões orçamentárias. Pasadena e outras acusações sobre a Petrobras também estão no pedido de afastamento em análise na Câmara.

Para o professor de Direito Administrativo Rafael Oliveira, do Ibmec-RJ, não há fato ligando diretamente Dilma aos desvios:

— A Lava-Jato revela atos de improbidade, crimes de responsabilidade. A dificuldade é que não há fato especificamente comprovado quanto a Dilma.

Sobre Pasadena, Oliveira diz não ser capaz de levar ao impeachment por ser anterior ao mandato, e pelo Conselho responder como órgão colegiado. O ex-procurador Roberto Tardelli tem opinião similar:

— Ela não era presidente na época (da compra da refinaria), e todo o Conselho votou a favor.

Já Ives Gandra defende que houve crime de responsabilidade também quanto à Petrobras:

— A lei 1.079 lista entre os crimes “não tornar efetiva a responsabilidade dos seus subordinados, quando manifesta em delitos funcionais ou na prática de atos contrários à Constituição”. A Petrobras foi assaltada, e ela (Dilma) nomeava pessoas. Mas não conduziu apurações.

— Impeachment, só por atos no exercício do atual mandato. Ficam excluídos outros mandatos e ações tomadas em outras funções. E omissões. “Ah, ela devia ter punido”. Omissão não é crime de responsabilidade, só ação — rebate Dalmo Dallari.