Coluna
Francisco Bosco O colunista escreve às quartas

Notas sobre moral e ética

Muitas vezes a própria realidade não é clara e firme, e sim turva e ambígua

A dúvida e a hesitação intelectuais não representam necessariamente falta de clareza cognitiva ou coragem moral para se posicionar com firmeza diante da realidade. Pois muitas vezes a própria realidade não é clara e firme, e sim turva e ambígua. Nesses casos, ao contrário do que se poderia pensar, o estatuto cognitivo da dúvida é justamente a verdade, e seu estatuto moral é a coragem (não é fácil suportar a angústia da indecisão).

O “artista” ou a “personalidade pública” que contrata um agente para cuidar de sua imagem assina um contrato com a sua própria canalhice. Quando se delega a um terceiro as decisões sobre como agir, o que declarar sobre determinados assuntos, quando falar e quando silenciar, como discernir entre o certo e o errado, como se orientar, em suma, na vida pública — quando se terceiriza tudo isso, renuncia-se à vida moral, que não é outra coisa senão dar-se o trabalho dos processos morais (as reflexões, o exame das situações, a formação dos juízos morais), tomar as decisões subsequentes e responsabilizar-se por elas. Um sujeito vazio de vida moral: é essa a sua verdadeira imagem. De resto, um tal sujeito, alienado de uma dimensão fundamental da experiência humana, não pode ser chamado de artista, uma vez que a arte é justamente o lugar onde as coisas se desalienam, autenticando-se.

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A moral é a ética que inclui a perspectiva do outro. O moralismo é a naturalização — interessada (dir-se-ia: ideológica) — da moral.

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Quem chama de “pedante” alguém que escreve “difícil” (difícil para quem?) mobiliza um álibi moral para uma reação, no fundo, imaginária: sente-se diminuído porque sua incompreensão revela sua ignorância — e procura recalcar isso projetando no outro seu sentimento de inferioridade. De resto, é absurdo moralizar o que não se compreende.

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O senso comum moraliza. O pensamento desmoraliza (para, se for o caso, inventar uma moral a partir de suas ruínas).

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“Não fez mais que a obrigação.” Como se fosse fácil, como se ordinariamente se cumprisse o dever, como se a virtude fosse algo além, e não justamente agir de acordo com o seu senso moral e de justiça.

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Uma amiga comenta que um importante artista brasileiro, de obra extremamente rigorosa, disse-lhe: “O mundo começou a acabar por causa de uma única palavra: comunicação”. Com efeito, se existe uma ética contemporânea, essa é a ética da comunicação. A ética contemporânea se acredita proposta como uma ética do outro, e logo não é de se estranhar que uma estética do outro — como a estética relacional e, tendencialmente, a arte interativa em geral — tenha dela se desdobrado. E, entretanto, apostando naquilo que os indivíduos já são subjetivamente, naquilo que já conhecem de si, são, na verdade, uma ética e uma estética do mesmo, da identidade. Assim, sem sair do registro da comunicação, os outros que participam da situação relacional permanecem sendo, cada um, seu próprio eu. São vários eus e nenhum outro, ou vários outros sem alteridade, dá no mesmo. Em vez disso, pode-se propor uma ética e uma estética do desconhecido, uma “ética das verdades”, como a chama Badiou, que “obriga as opiniões a um tal afastamento que ela é propriamente associal”. Essa a-socialidade é desde sempre reconhecida, ele observa: “são as imagens de Tales que cai num poço porque procura sondar o segredo dos movimentos celestes, é o provérbio ‘os amantes são solitários no mundo’, o destino isolado dos grandes militantes revolucionários, o tema da ‘solidão do gênio’, etc.”.

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O moralista é um idealista da impureza.

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Os que querem pairar ou soar acima da moral dizem: “Eu não julgo”. Mas não se deve simplesmente abdicar da moral (seria um desastre), e sim alargá-la, complexificá-la, torná-la compreensiva (nos dois sentidos da palavra: abrangência e entendimento). Logo, eu julgo sim, o tempo todo, mas compreensivamente.

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Ninguém é moralmente obrigado a ser herói. A obrigação moral é a de ser justo. A justiça não é uma virtude egoísta (como a inteligência), nem altruísta (como a generosidade), mas sim o equilíbrio entre os interesses particulares e os interesses do outro. Já o heroísmo requer o sacrifício dos interesses particulares em privilégio do outro. A coletividade, que o herói favorece, deve reconhecê-lo e admirá-lo por isso — mas seu parâmetro moral deve ser a justiça, não o heroísmo, que é o seu suplemento extraordinário. Ninguém deve ser moralmente condenado por não ser herói.

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