18/10/2014 08h00 - Atualizado em 18/10/2014 09h59

Filme retrata dupla que desafiou as regras da música e do casamento

Luhli e Lucina gravaram 'clássico perdido' e tiveram união a 3 com fotógrafo.
Documentário 'Yorimatã' está na Mostra de Cinema de São Paulo 2014.

Shin Oliva SuzukiDo G1, em São Paulo

Sucesso e reconhecimento artístico apareceram diversas vezes na trajetória de Luhli e Lucina, embora pouca gente do grande público saiba quem são Luhli e Lucina. Separadas, contribuíram para sucessos de Secos e Molhados ("O vira") e Zélia Duncan ("Depois do perigo"). Juntas, escreveram clássicos do repertório de Ney Matogrosso ("Bandoleiro", "Coração aprisionado") e fizeram um dos grandes tesouros escondidos da música brasileira, o disco de estreia delas em 1979. Essa afinidade musical e de vida - que rompeu uma série de convenções - é tema do documentário "Yorimatã", parte da programação da Mostra de Cinema de São Paulo (veja trailers acima e abaixo).

O filme nasceu a partir das pesquisas do diretor Rafael Saar para um outro documentário, "Olho nu", sobre Ney Matogrosso. A riqueza musical da carreira pouco conhecida do duo, o relacionamento amoroso inusual e um farto material de filmagem da década de 1970 chamaram a atenção do cineasta para um potencial filme.

Luhli (que já assinou Luli) e Lucina (antes Lucinha e Lucielena), ao contrário de vários "hippies de butique" da época, viveram de forma plena preceitos do movimento como desapego material, ampla criação artística e formas diferentes de amar.

"O Rafael [Saar] me falou: 'A história de vocês é única'. Primeiro, por conta da obra, são praticamente mil músicas compostas por nós duas, e a nossa história pessoal absurdamente incomum. Existem pessoas que já tiveram relações a três ou a quatro, mas, somado à arte, só conheço a gente mesmo. Nós duas com a música e Luiz Fernando com a fotografia e o cinema", afirma Lucina. "Foi uma amizade que explodiu em amor."
Luiz Fernando era Luiz Fernando Borges da Fonseca, companheiro das duas ao longo de mais de 15 anos e pai de dois filhos de Luhli e dois de Lucina. Foi autor de capas de discos de Ney Matogrosso e da cantora Joyce.

Os três viviam juntos com as crianças em um sítio à beira-mar em Filgueiras, na cidade litorânea de Mangaratiba (RJ). "Nossa casa nem tinha telefone e a estrada era ruim. A Rio-Santos estava sendo construída na década de 70. Nossos amigos chegavam de repente de mala e cuia e ficavam por um tempo. Sempre tinha uma penca de gente", conta Lucina, que anos antes havia sido namorada de... Ney Matogrosso. "Ele não gosta que falem disso [risos]. O que é mais íntimo ele prefere preservar."

Depois de começar o dia assistindo ao nascer do sol de Filgueiras em meio a um cenário de sonho, a dupla elaborava suas composições, entre um ou outro trabalho na horta, enquanto Luiz Fernando passava o dia no laboratório de fotografia ou esculpindo madeira.

"A gente vivia com muito pouco. O dinheiro vinha de direitos autorais, a Luhli tinha estourado com 'O vira', e das capas de LP que o Luiz fazia. A gente era muito franciscano, mas tinha aquele mar maravilhoso, uma casa agradável." 

Nesse cenário Luhli e Lucina desenvolveram por cinco anos as bases para "Luli e Lucina" (1979), o registro de estreia que tinha impressionantes harmonias vocais das duas e reproduzia a atmosfera onírica que viviam no sítio de Mangaratiba. As fitas originais da gravação do álbum, que tem "Coração aprisionado" e "Yorimatã okê aruê", se perderam. Uma cópia em vinil não é encontrada tão facilmente no mercado de usados e custa por volta de R$ 100.  

Reação da família
A felicidade do ambiente que descreve Lucina não era vista na reação dos parentes das duas ao estilo de vida bem pouco ortodoxo. "As famílias ficaram magoadas. Perdemos o contato por um tempo. São famílias maravilhosas, eu entendi, pude entender a reação naquela época. Não é tão simples assim. Atualmente existe uma grande discussão sobre preconceito, mas antes não tinha isso. Mesmo com a explosão hippie daqueles tempos, esse tipo de entendimento não alcançava a família", relata Lucina.

"As crianças sempre encararam com naturalidade. Só perceberam que existia uma diferença em relação a outras famílias quando foram para a escola. A gente nunca escondeu, mas também não afrontava."

A recusa em abordar o assunto no passado preservou a dupla de holofotes incômodos, mas Lucina diz que agora pensa diferente sobre o tema: "Nós sempre tivemos uma política de não falar para proteger as crianças. Isso nos custou fama. Grandes revistas fizeram propostas para fazer matérias impressionantes. A gente achava que a história da gente não era tão importante quanto a obra. Hoje eu revejo um pouco isso. Eu falo por mim, não falo pela Luhli. Mas se tivéssemos assumido aquela condição nós teríamos feito um bem para a sociedade. Teríamos dado um empurrão para as pessoas aceitarem outras formas de viver, outras maneiras de amar".  

A jornada da dupla ainda teve uma viagem de Kombi estilo "Pequena Miss Sunshine" Brasil afora, para divulgar o primeiro disco, e uma residência em São Paulo com participação no movimento musical oitentista Lira Paulistana. Até que houve o baque causado pelos problemas de saúde de Luiz Fernando.

"Ele estava numa fase boa quando começou o processo da dor dele. Parecia uma dor de ouvido. Teve um dia em que ele urrava. Até a gente descobrir que era um câncer", diz Lucina. Luiz Fernando morreu em 1990 vítima de um câncer que começou na faringe e posteriormente se tornou linfático.

"Tivemos que dar muitos passos para trás para recomeçar. Teve um período que ficamos por conta da dor", relata Lucina. "Nossa música sobreviveu, mas a gente não."

Na verdade, após a morte do companheiros das duas, houve mais um disco ("Porque sim, porque não?", 1992) e uma turnê pela Europa. Em 1997, a dupla se separa. E nem há planos para a retomada da dupla na esteira do documentário. Sim, elas se falam. Não há ruptura. Acontecem encontros musicais eventuais entre as duas, mas a dinâmica do passado parece ter se perdido.

"As músicas continuam atuais, as vozes continuam boas. Somos amigas, temos uma relação familiar, nossos filhos são irmãos, mas hoje em dia precisa ser um projeto muito especial". Ela cita a apresentação em Curitiba no ano passado com a Orquestra à Base de Corda e direção musical de João Egashira, fã da dupla. O documentário mostra cenas do show.

Luhli apresentará seu novo disco, "Música nova", no próximo dia 23 no Teatro Rival, no Rio de Janeiro. Terá Ney Matogrosso como convidado. E, claro, Lucina também.

Sessões de "Yorimatã":

Sábado (18), 21h - Espaço Itaú de Cinema Frei Caneca 3 (Rua Frei Caneca, 569, 3º piso, Consolação)

Terça (21), 15h - Espaço Itaú de Cinema Frei Caneca 2 (Rua Frei Caneca, 569, 3º piso, Consolação)

Quarta, (22), 21h10 - MIS, Museu da Imagem e do Som (Avenida Europa, 158, Jardim Europa)

Ingressos: Segundas, terças, quartas e quintas: R$ 16. Sextas, sábados e domingos: R$ 20

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