Rio

Levantamento do GLOBO revela que milícias já agem em 36 municípios do Estado do Rio

Pesquisa mostra ainda que prisão de quase mil integrantes de bandos em seis anos não evitou expansão

O condomínio Verona, um dos empreendimentos do Minha Casa Minha Vida, em Santa Cruz, é controlado por uma milícia
Foto: Pedro Kirilos / Agência O Globo
O condomínio Verona, um dos empreendimentos do Minha Casa Minha Vida, em Santa Cruz, é controlado por uma milícia Foto: Pedro Kirilos / Agência O Globo

RIO — Os estudantes Hugo Miguel da Silva e Natan de Souza Silva nunca se viram — as casas de suas famílias estão separadas por cerca de 300 quilômetros. Hugo, de 19 anos, cresceu nos arredores da Praia de Ramos. Em julho, após se envolver numa discussão, foi espancado até a morte por 11 homens, que, em seguida, jogaram seu corpo no asfalto da Avenida Brasil para simular um atropelamento. Quatro meses antes, Natan, de 21, foi executado a tiros por um grupo em Itaperuna, pouco depois de sair da escola. Segundo a polícia, os criminosos suspeitavam que o jovem estava envolvido com drogas. Apesar da distância entre os locais em que ocorreram, os assassinatos têm algo em comum: foram cometidos por milicianos, que avançam pelo Estado do Rio.

INFOGRÁFICO: ONDE AGEM AS MILÍCIAS NO RIO

Apesar das operações e investigações que, desde 2008, já levaram à prisão 989 milicianos (até aquele ano, apenas seis haviam sido detidos), grupos paramilitares continuam se multiplicando e já agem em 36 dos 92 municípios fluminenses. Esse crescimento foi constatado em um levantamento feito pelo GLOBO com base em dados da Polícia Civil e do Disque-Denúncia (2253-1177). Hoje, esses bandos exercem influência no cotidiano de pelo menos 620 mil pessoas, controlando a venda de produtos de primeira necessidade, meios de transporte e até a administração de conjuntos habitacionais. O poder paralelo está presente em 368 localidades, incluindo 51 bairros da capital. No interior, cresce em proporção geométrica, principalmente no Norte Fluminense: em seis anos, o número de áreas controladas na região saltou de duas para 23.

São espaços conquistados com extrema violência. Pelo menos 219 pessoas foram mortas em locais dominados por milícias entre 2006 e 2009, segundo estatísticas elaboradas pela Fiocruz e pelo Núcleo de Pesquisa da Violência da Uerj.

De janeiro a agosto deste ano, o Disque-Denúncia recebeu 2.522 ligações com relatos sobre ações de milícias em diferentes regiões do estado. A capital concentra o maior número de denúncias: foram 1.811 telefonemas — 73% do total. Predominantemente comandadas por policiais e bombeiros da ativa ou expulsos de suas corporações, essas quadrilhas ganharam notoriedade em meio às investigações da CPI das Milícias da Assembleia Legislativa. O relatório final elaborado pela comissão em 2008 cita a presença de grupos paramilitares em 171 localidades. Passados seis anos, a quantidade de favelas e conjuntos dominados cresceu 115%.

QUANDO COMBATER MILÍCIA ERA CRIME

Entre as razões que vêm dificultando a desarticulação dos bandos mesmo quando seus chefes são presos está o fato de terem crescido sob a anuência de autoridades. Esses grupos são controlados por policiais que moram em comunidades que eram dominadas pelo tráfico de drogas. No começo, eram vistos por moradores como “grupos de autodefesa”.

— Quando entrei na Polícia Civil, há oito anos, a milícia não era crime. Crime era combater a milícia — lembra o delegado Alexandre Capote, titular da Divisão de Repressão às Ações Criminosas e Organizadas e Inquéritos Especiais (Draco-IE).

Responsável por vários inquéritos que apuram crimes praticados por milicianos, ele chegou a responder a uma sindicância na Corregedoria da Polícia Civil em 2006, ano em que prendeu o PM Fabrício Fernandes Mirra por um assassinato em Marechal Hermes. Na época, Mirra era apontado como um dos chefes de um dos maiores grupos paramilitares do Rio.

Comum em 2006, o discurso de que as milícias surgiram para garantir a segurança de comunidades carentes — a exemplo da Rio das Pedras (em Jacarepaguá) dos anos 80 — desapareceu diante da crescente crueldade adotada contra moradores. Impondo o medo, os milicianos ganharam terreno e passaram a dominar grandes regiões. Na Zona Oeste, Campo Grande virou reduto da maior e mais poderosa milícia. Investigações da Polícia Civil e do Ministério Público estadual revelam que essa quadrilha também controla áreas nos bairros de Realengo, Bangu, Santa Cruz, Sepetiba e Guaratiba, e chegou aos municípios de Mangaratiba, Angra dos Reis, São Pedro da Aldeia e Nova Iguaçu.

O bando, que já teve como chefes Natalino Guimarães, ex-deputado estadual, e seu irmão Jerominho, ex-vereador, ambos presos e condenados, é considerado um dos mais organizados. Segundo investigadores, mantém ligações com grupos menores que seguem uma lógica de atuação semelhante à das franquias: integrantes da ‘‘matriz’’ recebem percentuais sobre o faturamento das ‘‘filiais’’.

Atualmente, milícias que buscam novas áreas têm uma prioridade: os conjuntos habitacionais. Quadrilhas já controlam 17 empreendimentos do programa do governo federal Minha Casa Minha Vida na Zona Oeste, nos quais vivem 14 mil pessoas. O avanço sobre esse tipo de moradia começou nos condomínios do Quitungo, em Cordovil; no IAPI e no IAPTec, na Penha; no IAPC e no Pombal, em Cascadura; no Conjunto dos Ex-Combatentes, em Benfica; e na Cohab em Realengo. Neles, paramilitares assumiram a administração dos serviços de manutenção dos prédios, cobram taxas de segurança e ainda lucram com a exploração ilegal de sinais de TV a cabo, entre outras atividades.

Nos novos conjuntos, os milicianos atuam com maior violência, obrigando moradores a pagarem taxas que muitas vezes os levam ao endividamento e, consequentemente, à expulsão dos apartamentos.

Foi o que aconteceu com uma moradora do Condomínio Ferrara, em Campo Grande. Com dívidas que não conseguia pagar, ela viu seu filho de 15 anos ser assassinado e, logo depois, teve de sair de casa apenas com a roupa do corpo.

Um outro morador do conjunto teve seu apartamento invadido por um policial civil. De arma em punho, ele o obrigou a carregar uma geladeira, uma TV e um aparelho de som até seu carro. Os bens serviriam para cobrir uma taxa de segurança atrasada. Desempregado, o morador recebeu ordem para deixar o imóvel. O policial era Alexandre Antunes, preso no mês passado com outros 24 acusados de integrar a quadrilha.

Em nota, o Ministério das Cidades informou que está a par do problema nos conjuntos do Minha Casa Minha Vida e que, em parceria com a Secretaria Nacional de Segurança Pública, formou um grupo de trabalho para ‘‘integrar ações voltadas à prevenção de condutas ilícitas nos programas habitacionais da União”.