Brasil Conte algo que não sei

Bárbara Nascimento, professora e ativista: 'A lotação do Vidigal está esgotada'

Carioca reúne memórias do morro onde nasceu. Para ela, ocupação pela classe média e por estrangeiros vai criar êxodo e destruir a identidade da favela
RI Rio de Janeiro (RJ) 30/12/2014 Diga algo que não sei. Barbara Nascimento. Memória do Vidigal Foto Domingos Peixoto / agência o Globo Foto: Domingos Peixoto / Agência O Globo
RI Rio de Janeiro (RJ) 30/12/2014 Diga algo que não sei. Barbara Nascimento. Memória do Vidigal Foto Domingos Peixoto / agência o Globo Foto: Domingos Peixoto / Agência O Globo

“Tenho 36 anos e nasci no Vidigal, onde vivo. Minha mãe é baiana, tenho um filho de 3 anos e sou casada com um mecânico de máquinas de lavar. Cursei Letras na UFRJ, e hoje ensino português e literatura numa escola estadual no morro. Também sou militante em defesa da favela e de sua cultura”

Conte algo que não sei.
A lotação do Vidigal está esgotada. Vou botar uma placa na entrada dizendo isso. Tem engarrafamento. Caminhão subindo e descendo. Hotel. Tem até um Belmonte. Belmonte lá é coisa de favela? Dia sim, dia não, falta luz. O pessoal acha que é droga subindo. A falta de luz é outra coisa: é colapso no uso de energia em espaço de alta densidade.

O que está acontecendo?
É o que estou estudando para meu mestrado. A relação de quem está aqui com quem vem de fora. Como lidam com os visitantes, a classe média que compra a casa do vizinho, os gringos e a turma que vem para essas festinhas na favela nas quais não vai favelado.

Já foi a uma festa dessas?
Fui uma vez para nunca mais. Além de mim, só havia três vidigalenses: o bilheteiro, o segurança e um ator. Eu e o ator nem contamos. Tenho um nível de renda melhor e um grau acadêmico. Mas cadê o pessoal que vive a dureza?

Você é contra o convívio?
De forma alguma. Sou contra a apropriação. Estar passeando com meu filho e ser fotografada. Não sou macaco. E sou contra a alta dos preços de imóveis. Como fica para quem aluga? Antes, o interesse era pela Rua Nova e pela Rua 3, que não são favela. Agora querem ficar nos lugares que são nossos.

“Nossos”, de quem?
Defendo que favela é para favelado. Já proibiram o baile funk, acabando com o lazer da galera. Isso gera frustração. O samba era associado à bandidagem. Queriam matar o gênero. Com o funk é igual. Era financiado pelo tráfico? Era. Ué, então por que o Estado não financia o funk? Porque é música de pobre! Por isso, acho difícil o convívio realmente pacífico.

Você usa sempre o termo favela e nunca comunidade.
Qualquer grupo é comunidade. Não tem cara. Favela significa algo. Um tipo de lugar. História. É uma palavra bonita. Está nas canções. E comunidade? O que é? Parece o eufemismo de falar “moreno” em vez de negro.

Que tipo de memória você está recolhendo?
Um dos focos é o movimento de defesa da favela no final dos anos 1970, a guerra contada pela gente, não por um sociólogo de fora ou, pior, por um apresentador de TV.

Conte um episódio.
Tem o do caminhão que chegou para remover moradores. Adivinha que caminhão era?

Não faço ideia.
Da Comlurb. Caçamba de lixo para remover favelado. O pessoal ofereceu café, churrasquinho para os condutores, que, afinal, eram humildes como nós, até o advogado Bento Rubião chegar e impedir aquilo.

Como anda a UPP?
Bom, a gente não vê mais bandidos armados por todo canto patrulhando a gente. Mas eles continuam lá no alto, dão tiro. E agora, em vez de uma facção, são duas.

O que a memória do Vidigal pode ensinar ao Rio e ao país?
A pessoa quando conhece seu lugar se reconhece como indivíduo. Aqui, uma população já marginalizada corre o risco de perder o sentido de pertencimento: o seu lugar está sendo negado. A memória pode ensinar que há uma história, uma identidade, que é preciso ficar, combater a gentrificação, e que isso inspire outros povos.