“Não há nada menos vazio do que
um estádio vazio. Não há nada menos mudo do que as arquibancadas sem ninguém”. Foi o que
ensinou, na crônica "O Estádio", o escritor uruguaio Eduardo Galeano. Talvez ainda lhe falte conhecer o
Canindé. Na última sexta-feira, alguns raros torcedores ocupavam as arquibancadas de cimento
do estádio. Poucos, definitivamente não estavam mudos. Eram gritos de revolta, mas
que não preenchiam o vazio que se tornou a Portuguesa, que nesta terça pode cair para a Série C se perder para o Oeste, em Itápolis.
Alguém mais paciente poderia
contar, uma a uma, as testemunhas que deixaram suas casas para acompanhar mais
um capítulo da triste rotina que tomou o tradicional clube paulista nesta
temporada. A derrota para o Icasa, por 2 a 1, nem de longe surpreende – foi a 17ª
na Série B, em 32 jogos. Eram apenas 435 torcedores, o pior público do torneio.
Retrato fiel da equipe quase centenária, afundada em uma crise sem precedentes –
até para quem já está acostumado a elas.
- É o pior momento da nossa
história - resume o presidente do Conselho Deliberativo da Lusa, Marco Antonio
Teixeira Duarte, agora também presidente em exercício do clube, já que o
eleito, Ilídio Lico, foi suspenso pela Justiça Desportiva, e o vice, Roberto
dos Santos, que acumulava a função, entregou o cargo na última semana.
A derrocada lusitana não começou
no tribunal que lhe tirou quatro pontos pela escalação irregular de um atleta,
no fim de 2013, mas a decisão que custou a vaga na elite do futebol brasileiro
e derrubou o time para a segunda divisão é um marco desse caminho ladeira
abaixo que culminará, em breve, em uma inédita queda para a Série C – e não há
perspectivas claras de que termine por aí.
O tapetão
No dia 27 de dezembro de 2013, dois
depois do Natal, os auditores do Pleno do STJD (Superior Tribunal de Justiça
Desportiva) negaram recurso da equipe paulista e mantiveram a punição aplicada
em primeira instância: perda de quatro pontos pela escalação do atacante Héverton
no empate em 0 a 0 com o Grêmio, na rodada final do Brasileiro, quando ele ainda
deveria cumprir uma suspensão imposta pelo tribunal. A pena colocou a Portuguesa na zona de rebaixamento e tirou o
Fluminense de lá, salvando os cariocas da degola.
Um golpe fatal nos cofres
rubro-verdes, já bastante debilitados à época. Quebrado, o clube buscava
empréstimos no mercado, mas repetidamente ouvia recusas. O antigo mandatário,
Manuel da Lupa, passou a tomar dinheiro em seu nome com o Banif, velho parceiro
da equipe, para repassar à Portuguesa – o banco cobra mais de R$ 40 milhões.
Parte desse dinheiro, cerca de R$ 600 mil, nunca teve seu destino comprovado, o
que levou o Ministério Público, que também investiga os motivos que fizeram Héverton
ser escalado naquela tarde de domingo, a instaurar um inquérito civil, ainda em
andamento, para investigar uma suposta fraude. Da Lupa, que deixou a presidência em janeiro, após oito anos como principal cartola do clube, enfrenta também um processo no Conselho que pede sua expulsão.
A principal fonte de renda da Lusa caiu
vertiginosamente: a arrecadação com direitos de TV passou de R$ 21 milhões, em
2013, para R$ 2,7 milhões neste ano. Ao assumir, a atual diretoria descobriu
ainda que praticamente todas as receitas previstas para 2014 já haviam sido
adiantadas. Restavam R$ 600 mil, da cota a que o clube tinha direito pelo
Campeonato Paulista. Em busca de dinheiro, fez acordo com a DL Tablets, que
ocupa o principal espaço de patrocínio na camisa da Lusa, para que a empresa
pagasse à vista o valor relativo ao contrato válido pelo ano todo. Para isso,
ofereceu desconto sobre o R$ 1,2 milhão acertado – só R$ 900 mil foram
depositados. O remédio teve efeito curto, e o rombo nas contas lusas aumenta
entre R$ 1,5 milhão e R$ 2 milhões por mês.
- Descemos ao fundo do poço,
temos que passar a Portuguesa a limpo e recomeçar do zero - afirma Teixeira
Duarte, filho de Oswaldo Teixeira Duarte, ex-dirigente que dá nome ao estádio
do Canindé.
Banco Quente
O rebaixamento fora de campo
manteve o técnico Guto Ferreira no banco da equipe no início de 2014. O começo
ruim no Paulista, sob risco de nova queda, causou a primeira de uma série de
troca de comandos na Portuguesa. Argel Fucks, Marcelo Veiga, Silas e Vagner
Benazzi também tentaram salvar o time e não tiveram sucesso. Sem esperanças, a
diretoria decidiu manter na função o interino José Augusto até o final do ano.
Argel conseguiu evitar a degola
no Estadual, mas não resistiu na Série B. Era ele quem dirigia a equipe na
estreia da segunda divisão, em Joinville, quando os atletas deixaram o
campo aos 17 minutos do primeiro tempo a mando do presidente Ilídio Lico. O
dirigente dizia cumprir uma liminar, concedida a um torcedor que ingressou na
Justiça comum para que o clube recuperasse um lugar na Série A.
A atitude resultou em W.O., com
vitória do Joinville por 3 a 0. O clube ia, novamente, para o tribunal. Lá,
Lico foi suspenso por 240 dias. Argel, que no episódio demonstrou contrariedade
com a decisão do cartola, recebeu quatro jogos de gancho.
- Fiz milagre no Paulista, mas aquilo
foi a gota d’água para mim. Eu queria jogar. Passei vergonha para caramba no
julgamento, poderia ter sido suspenso por um ano - diz o treinador, hoje no Figueirense, que reclama
não ter recebido nenhum pagamento do período em que trabalhou na Lusa - mesma situação
relatada por Silas e Marcelo Veiga.
O último ainda acusou um ex-diretor
de exigir a escalação de um jogador.
- Ele queria que eu colocasse um
garoto no banco contra o Oeste, e que isso se repetisse depois. Dizia que o pai
do menino havia investido um dinheiro. Se eu não fizesse, seria demitido. Foi o
aconteceu - conta Veiga, que deixou o time justamente após a partida contra o clube de Itápolis.
O mesmo cartola é citado por diferentes personagens como protagonista de uma história surreal: teria jogado no lixo, ao assumir, imagens de santos que adornavam seu escritório. Eram peças de Nossa Senhora Aparecida e Nossa Senhora de Fátima. O
clube, de raízes católicas, nega que isso tenha acontecido.
atrasos
Por causa desses atrasos em seus
pagamentos, os técnicos que dirigiram o time neste ano engordam a lista de ações judiciais enfrentadas pela
Portuguesa.
- Os processos despencam do céu no
clube, dia a dia. Eram 48 ou 50 em 2013, já são 138 desde janeiro - calcula Marco Antonio
Teixeira Duarte.
Entre o elenco, que recebeu mais
de 50 atletas na temporada, a falta de pagamentos atinge apenas aqueles que
treinam afastados, segundo o próprio clube admite. Os atletas que têm sido
utilizados regularmente estão com os pagamentos em dia graças à ajuda de
conselheiros – uma colaboração de R$ 400 mil mensais.
Na última semana, a crise também
chegou aos funcionários que trabalham no Canindé. Sem receber, eles fizeram uma
greve e pararam o estádio e a sede social da Lusa. A situação foi contornada
pelo presidente, que pagou R$ 200 mil do próprio bolso para regularizar a folha
de R$ 300 mil – o valor restante ele conseguiu ao adiantar, ainda em outubro, a
venda de espaços para a tradicional Festa Junina do clube.
A perspectiva de receitas até
dezembro é das mais pessimistas. O aluguel do ginásio e do estádio para eventos
gera valores insuficientes, mas que ajudam. Em curto prazo, há a expectativa de
receber cerca de R$ 1 milhão por ter sido o clube formador do volante Guilherme,
negociado pelo Corinthians com a Udinese, da Itália, em julho. Depois disso, só incerteza.
Do futebol, os dirigentes preveem
negociar um ou outro atleta jovem, das categorias de base. A bilheteria só
amplia o saldo negativo, rodada a rodada: apenas o jogo contra o Vasco teve renda
positiva (R$ 34.287,89). Em boa parte dos outros confrontos, o prejuízo superou
os R$ 30 mil.
culpados
Nas arquibancadas vazias do
Canindé, o que não faltam são críticas aos apontados como culpados pela situação atual do clube.
- A CBF arrumou essa pra gente.
Tirou a gente, que ganhou o jogo, do campeonato. O Fluminense perdeu em campo -
afirma o marceneiro Antonio Dionísio, vestido com a camisa da "Barcelusa", apelido que ganhou o time de 2011, campeão desta mesma Série B com campanha irretocável.
- O time está muito ruim, mas o
problema não é dos jogadores. É a diretoria que contrata mal. Uma diretoria que
diz que não tem dinheiro e contrata 60 jogadores? - indaga a professora Fátima
Figueiredo de Almeida.
Nem o Ministério Público escapa da
ira dos torcedores portugueses. O órgão estadual, que assumiu uma investigação que
prometia anular a decisão do STJD, até agora infrutífera, também é lembrado.
- Eles iludiram o presidente, que
tirou o time de campo lá em Joinville. Depois o Argel saiu, ele que era um
técnico melhor que os outros. Se tivesse ficado e montado um time para a Série
B, não estava nisso aí - protesta o comerciante Fernando Augusto Leal.
"Cada jogo é um tormento"
É preciso ser dono de um otimismo
irracional para ainda nutrir esperanças de que a Portuguesa consiga se salvar
do rebaixamento para a Série C. A equipe tem apenas três vitórias até aqui – a última,
contra o Vila Nova, foi na rodada final do primeiro turno – e, com 21 pontos,
está 14 atrás do Icasa, o primeiro fora da zona da degola. A queda pode ser
sacramentada nesta terça-feira, em caso de derrota para o Oeste, em Itápolis – se empatar,
torce por um tropeço dos cearenses contra o Náutico, no próximo sábado, para continuar respirando.
A comissão técnica já jogou a
toalha. Depois do duelo de sexta-feira, o discurso de José Augusto foi o de
manter a dignidade nas seis partidas que ainda restam.
- Digo aos jogadores que temos
que levar as coisas a sério. A Portuguesa é muito grande. Eles têm que ter a
consciência de que esse clube, com tantas glórias, não é merecedor deste
momento.
Resignado, o treinador admite que
conta as horas para encerrar a temporada.
- Queremos terminar com isso o
mais rápido possível. Cada jogo é um tormento - conclui.