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Ignorada por décadas, obra de H.P. Lovecraft renasce com novas edições no Brasil

Povoados por criaturas monstruosas, romances e contos do autor americano inspira trabalho de artistas e filósofos contemporâneos

Lovecraft: lido por Borges e Deleuze
Foto: Agência O GLOBO / Loredano
Lovecraft: lido por Borges e Deleuze Foto: Agência O GLOBO / Loredano

RIO — Um mundo de monstros de proporções gigantescas com tentáculos saindo da cabeça e milhões de anos de idade. Um mundo totalmente distante do que chamamos de humano, com seres que não podem ser classificados como animais ou vegetais, nem mesmo se pode assegurar se estão vivos ou mortos. Um mundo com gosmas pegajosas, vapores malignos, odores repulsivos, mortes gratuitas. O horror mais repulsivo escorrendo a cada página. Após um longo período de negação da crítica mais intelectualizada, este mundo criado pelo escritor americano Howard Phillips Lovecraft (1890-1937), que tem uma série de livros relançados agora pela editora Iluminuras, transformou-se em inspiração para um grupo de filósofos de vanguarda.

— Somente deuses estranhos podem nos salvar agora — defende, bem-humorado, o filósofo americano Graham Harman, um dos fundadores do movimento chamado de “realismo especulativo” e autor de um livro sobre Lovecraft chamado “Weird realism” (“Estranho realismo”, em tradução livre, inédito no Brasil).

Na obra, Harman argumenta que Lovecraft é uma espécie de Hölderlin da nova geração de pensadores, fazendo referência ao poeta alemão que teve forte influência sobre Martin Heidegger. Segundo Harman, os “deuses estranhos” que “podem nos salvar” devem ser entendidos de maneira ampla, como aquilo que dá uma “alma” às coisas, dá uma estrutura à vida.

— Se não tivermos essa estranheza, tudo o que temos são tentativas de nomear os objetos como se fossem uma lista de qualidades comprovadas. Mas um objeto não é somente uma lista de qualidades, é algo além dessas qualidades. Lovecraft sabia disso melhor que ninguém, tanto que sempre nos lembrava que as descrições de seus narradores eram inadequadas.

Autor de contos e novelas como “O chamado de Cthulhu” e “Nas montanhas da loucura”, o escritor americano publicava em revistas populares, as chamadas pulp fictions , como a “Weird tales”. Depois de sua morte, em 1937, apesar de se tornar cada vez mais popular, sua obra não passou pelo crivo de críticos como o americano Edmund Wilson, que declarou: “Lovecraft não era um bom escritor”.

Anos depois, porém, Lovecraft veio a ser considerado um continuador e aprofundador da literatura de horror encontrada em Edgar Allan Poe. Também se transformou em referência para autores e pensadores aceitos pela chamada “alta cultura”, como Jorge Luis Borges, Gilles Deleuze e Félix Guattari. Na década de 1990, Michel Houellebecq, antes de escrever seus livros mais famosos e ganhar os principais prêmios literários franceses, escolheu o americano para ser o protagonista do seu ensaio “Contre le monde, contre la vie” (“Contra o mundo, contra a vida”, inédito em português). Mas Lovecraft só entrou em definitivo no cânone literário em 2005, quando sua obra foi publicada pela prestigiada coleção Library of America, uma espécie de selo de aprovação.

— O fato de Lovecraft ter sido considerado apto a esta inclusão fez muitas pessoas, inclusive eu, dar uma olhada mais séria nele — diz Harman.

O que fez muitos intelectuais torcerem o nariz para Lovecraft foi o fato de ele ser um escritor de fantasia que funda uma mitologia, como J. R. R. Tolkien em “O senhor dos anéis”, mas ancorada no horror e na estranheza. Em vez de hobbits, elfos e orcs, seres ainda aparentados com os homens, encontramos shoggoths, mi-gos, os grandes antigos — nada que seja vagamente humano. São seres disformes, horríveis e de outras eras geológicas que parecem saídos de um bestiário.

“Na ficção de Howard Phillips Lovecraft, apenas coisas inverossímeis acontecem, sem nenhuma referência à trivialidade da vida cotidiana”, diz o texto de apresentação das coletâneas de contos “A maldição de Sarnath”, “À procura de Kadath” e “O horror em Red Hook”, relançadas agora pela editora Iluminuras com novo projeto gráfico. São os três primeiros de uma série de sete que serão publicados até o final de 2015, concluindo os contos completos do autor. A Iluminuras lançará ainda seus textos em parceria e seu único romance, “Nas montanhas da loucura”, também recém-lançado em edição de bolso pela L&PM.

O editor Samuel Leon, da Iluminuras, diz que a tradução de Celso M. Paciornik é um dos pontos altos dos novos livros:

— Ele encontra um bom equilíbrio entre o gótico americano, de difícil transposição, e o português.

Se foi preterido pela crítica por algum tempo, Lovecraft se tornou agora querido por uma nova geração de pensadores e acadêmicos por ter despertado, “em plena era tecnológica, as forças avassaladoras (...) que definem as possibilidades e os limites do Homo sapiens”, escreve o filósofo argentino Fabián Ludueña Romandini no livro “H. P. Lovecraft: a disjunção do ser” (Cultura e Barbárie).

— Lovecraft tenta pensar novos modos de conceber o mundo, o sujeito, a vida e a morte da espécie humana. Sua literatura constitui, então, uma via régia para a exploração e o entendimento do entorno que, a cada dia, se torna mais e mais hostil como habitação do homem — diz Ludueña, por e-mail.

Esses “mitos de Chtulhu“, como são conhecidos hoje em dia, já inspiraram artistas como os escritores Alan Moore e Neil Gaiman ou os cineastas John Carpenter e Guillermo del Toro. Serviu também de estímulo para músicas, inúmeros jogos de videogame e RPGs, além de encorajar uma montanha de fãs a continuar seu legado escrevendo ficções próprias. Hoje o nome de Lovecraft virou adjetivo.

— No século XXI, a obra de Lovecraft assinala o horror como conceito supremo de uma humanidade cujos conceitos herdados da tradição resultam insuficientes para a compreensão de si mesma e do seu entorno — diz Ludueña.

Após gerações de filósofos que pensavam a partir da perspectiva do homem, o escritor americano, nascido na cidade de Providence, teria conseguido retratar a alteridade extrema, ou seja, aquilo que seria radicalmente oposto ao humano. Teria indicado uma saída para a antropomorfização do mundo, o que seria um alento para uma geração que tenta pensar além do homem.

— Na esfera do pós-humano, as máquinas e os animais são também objetos de pensamento, são questões fundamentais da filosofia — argumenta Erick Felinto, professor da Faculdade de Comunicação Social da Uerj, que escreveu sobre Lovecraft para a coletânea de artigos “Eros, Tecnologia, Trans-humanismo: figurações culturais contemporâneas”, planejada para 2015. — Esse interesse atual pela tecnologia, pela cibercultura tem a ver com a ideia de que o humano nunca foi “puro”, sempre se definiu pela técnica.

Mesmo ainda longe de ser unanimidade na crítica literária, Lovecraft despertou nos pensadores a necessidade de refletir sobre novas questões cada vez mais urgentes. Não mais pelo espanto, sentimento associado desde os gregos com esse “despertar”, mas pelo horror.

— O horror pensa mais fundo e além da filosofia — diz Felinto.