Coluna
Tony Bellotto O colunista escreve aos domingos

Onde estão Jandira e Elizângela?

É inaceitável a crueldade com que tratamos as brasileiras que interrompem a gravidez

1.

Aborto é um assunto tabu.

É também um assunto desagradável.

Candidatos à eleição evitam falar dele com medo de perder votos. A menção da prática evoca uma sombra tenebrosa como se vivêssemos num feudo medieval. Além de condenado moralmente, o aborto é também crime previsto pelo Código Penal Brasileiro, e quem o pratica está sujeito a até quatro anos de detenção. O aborto só é permitido em casos em que a gravidez causa risco de vida para a mulher, gravidez resultante de estupro ou se o feto for anencefálico (por decisão votada em 2012 pelo STF depois de muita batalha e polêmica). No entanto, nada disso impede que abortos sejam praticados no Brasil por algo em torno de um milhão de mulheres por ano. Para isso, recorrem a clínicas clandestinas e outras formas arriscadas de interromper a gravidez. Pela dificuldade de se contabilizarem os casos, estima-se que 250 a 10 mil mulheres morram anualmente no país em decorrência de abortos ilegais. Melhor evitar assunto tão espinhoso, não? Tanta coisa bacana acontecendo.

2.

A socióloga Jaqueline Pitanguy escreveu no domingo passado aqui no GLOBO uma crônica bastante elucidativa sobre a insensibilidade de nossa sociedade em relação ao aborto ilegal e suas consequências. Os casos recentes de Jandira, de 27 anos, e de Elisângela, de 32, ilustram bem o absurdo da situação que vivemos no Brasil. Ambas, já mães de outros filhos, decidiram interromper a gravidez indesejada e foram vítimas de crimes bárbaros. Jandira foi encontrada carbonizada um mês depois de seu desaparecimento — quando embarcou num carro que a levaria a uma clínica clandestina —, e Elisângela foi abandonada sem vida em frente a um hospital depois de ser vista pela última vez quando se dirigia a uma clínica de aborto. Papo sombrio. Já abriu a janela? Está fazendo sol?

3.

Se o aborto fosse legalizado no Brasil, como é na Alemanha, Austrália, Bélgica, Canadá, Dinamarca, Estados Unidos, França, Holanda, Inglaterra, Itália, Japão e Suécia — entre muitos outros países —, Jandira e Elizângela teriam recebido assistência médica decente e estariam hoje vivas. Mesmo na atual situação brasileira, em que o aborto é proibido e passível de punição por lei, se Jaqueline e Elizângela fossem de uma classe social mais abastada e tivessem feito seus abortos em clínicas frequentadas por mulheres de classe média alta, também estariam vivas agora. O que é, no mínimo, bastante injusto e revelador, não? Eu bem que poderia falar de gaivotas em voo rasante sobre o mar encrespado de Ipanema.

4.

Mas se Jandira e Elizângela estão mortas, é preciso responsabilizar também a sanha de grupos políticos e religiosos que se dedicam a impedir que nossa legislação avance no sentido de permitir legalmente o aborto e oferecer assistência médica e psicológica a quem queira interromper a gravidez indesejada, como fazem países mais civilizados e desenvolvidos. Esses grupos arvoram-se em advogados da vida, mas na prática acabam por promover uma espécie de genocídio. É um descalabro que num estado laico em pleno século XXI nos pautemos por convicções religiosas e impeçamos que milhões de mulheres tenham direito a um serviço de saúde pública eficiente, moderno e democrático. Por causa da abnegação beligerante e obtusa de padres, pastores, pregadores, políticos, fundamentalistas, reacionários e conservadores em geral, eternizamos uma situação horrenda e extremamente cruel com nossas mulheres, principalmente as mais pobres. Está dando praia hoje? Desculpe.

5.

Quando o pedreiro Amarildo desapareceu nas mãos e desvãos da polícia na Rocinha, uma grande revolta se instaurou na sociedade, e a pergunta “Onde está o Amarildo?” se tornou um símbolo de questionamento e protesto ao abuso policial. Quando Jandira e Elizângela desaparecem pela insensibilidade de nossas leis e códigos morais, fazemos cara de que o assunto não nos diz respeito e deixamos por isso mesmo. Quando se trata de defender o casamento gay e a liberação da maconha, todos — à exceção dos moralistas de plantão — acertadamente nos posicionamos a favor dos direitos individuais de homossexuais e usuários de drogas leves. Mas bastou falar em aborto e a maioria se fecha em evasivas e hesitações, “não sei, aborto é um assunto delicado…”

Aborto é um assunto tabu.

É também um assunto desagradável.

E pensar que deve haver agora asas delta cortando os bucólicos céus de São Conrado.

6.

“Onde estão Jandira e Elizângela?” é a pergunta que se faz aos que se opõem à legalização do aborto. Talvez muitos respondam, com dissimulada satisfação, que as duas devem estar queimando nas chamas do inferno. Seria essa a resposta cristã? É inaceitável a crueldade com que tratamos as brasileiras que querem interromper a gravidez indesejada.

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