30/07/2011 10h31 - Atualizado em 30/01/2012 01h17

No Andaraí, empreendedores sofrem com resquícios da violência do tráfico

'Tem gente da parte alta que não vem comprar comigo', afirma comerciante.
'Recebi ameaças de morte', revela presidente da associação de moradores.

Bernardo TabakDo G1 RJ

Sérgio conta das rixas que ainda existem em partes da comunidade (Foto: Bernardo Tabak/G1)Sérgio conta das rixas que ainda existem em
partes da comunidade (Foto: Bernardo Tabak/G1)

O Morro do Andaraí é uma das poucas favelas de Rio de Janeiro onde ocorreram problemas mais graves de violência após a instalação de uma Unidade de Polícia Pacificadora (UPP), da Polícia Militar. Dois mototaxistas foram mortos, na noite do dia 27 de junho, por homens que passaram atirando de dentro de um carro, na Rua Paula Brito, um dos acessos à comunidade.

A violência, herança dos tempos do poder paralelo do tráfico, ainda preocupa, e os empreendedores da favela relatam os problemas. “Ainda existe rixa entre moradores de determinadas localidades, que eram dominadas por diferentes facções de traficantes”, conta o comerciante Sérgio Roberto Vieira, dono da Guidon, uma pequena loja de venda de peças e acessórios para motos. "Tem gente da parte alta da favela que não vem comprar comigo”, afirma Vieira.

Outro relato de influência da violência no dia a dia da comunidade vem do atual presidente da Associação de Moradores e Amigos do Morro do Andaraí (Amama), Jorge Mathias de Souza, o “Bidu”, de 35 anos. “Já recebi ameaças de morte por causa do comércio de gás na favela”, revela ele, outro empreendedor local, dono há 15 anos de um depósito de bebidas e de um bar.

“A UPP chegou a fechar a associação de moradores, que era controlada pelo tráfico”, recorda Bidu, ressaltando que a comunidade ainda está ressabiada com a pacificação. “Somente há um mês começaram a chegar os serviços públicos na favela, quase um ano depois da entrada da polícia. Por conta dessa demora, a UPP perdeu muita credibilidade entre os moradores”, conta Bidu.

Antes de trabalhar com peças para motos, Sérgio Vieira vendeu botijões de gás por quatro anos, quando a favela ainda não era pacificada. Ele confirma a influência dos traficantes no negócio. “Eu nunca dei dinheiro ao tráfico. Mas, pelo que sei, a distribuidora era obrigada a pagar R$ 6 para poder deixar os botijões comigo. E eu cobrava mais R$ 5 em cima, para poder pagar o custo do estabelecimento e ter alguma margem de lucro”, conta.

“No fim das contas, o botijão, que custava R$ 32, chegava ao morador por R$ 43”, complementa Vieira. Por mês, ele vendia cerca de 5 mil botijões. “Eu tinha cinco motoqueiros, e chegava a entregar em lugares distantes, como em bairros ao longo da Avenida Brasil”, acrescenta.

Do alto do Morro do Andaraí, avista-se a favela e grande parte da Zona Norte da cidade (Foto: Bernardo Tabak/G1)Do alto do Morro do Andaraí, avista-se a favela e grande parte da Zona Norte da cidade (Foto: Bernardo Tabak/G1)

Donos de motos agora têm oficina e loja dentro da favela
Mas, apesar de faturar cerca de R$ 25 mil por mês com a venda de botijões na época, Vieira recorda dos problemas que o tráfico causava. “No início, muitos comerciantes progrediram por causa do tráfico. Mas, depois, a nova geração de traficantes não respeitava ninguém. Só extorquiam, comiam de graça nos bares”, recorda. “Se tivesse aberto a loja naquela época, ia ter que dar peças de graça para eles colocarem nas motos”, acrescenta.

Com a pacificação do Andaraí, Vieira acredita que a tendência é aumentarem os negócios no morro. “Só de capital investido em peças eu tenho cerca de R$ 10 mil”, conta ele, que levantou o dinheiro em um empréstimo bancário, depois de se formalizar pelo Simples. O próprio Vieira pretende expandir o empreendimento. “A minha ideia é descer o morro. Quero abrir uma loja de autopeças no asfalto”, planeja.

O comércio de peças e acessórios de Vieira surgiu praticamente no mesmo período em que o jovem Igor Portavales Ferraz, de 23 anos, montou a primeira oficina de motos do Andaraí. Após três anos como funcionário da Honda, agora ele pilota o próprio negócio: a Scap Motos.

Desde criança, Ferraz conta que admirava motos. “Ainda moleque, consertava bicicletas”, recorda. Após dois meses da inauguração, a Scap Motos conserta, em média, três motos por dia, “a maioria de moradores da comunidade”. Ele formalizou o negócio desde o início, como microempreendedor individual (MEI).

Igor posa ao lado de uma moto em cima do macaco hidráulico recém-comprado, e que conseguiu parcelar (Foto: Bernardo Tabak/G1)Igor posa ao lado de uma moto em cima do macaco hidráulico recém-comprado, e que conseguiu parcelar (Foto: Bernardo Tabak/G1)

“Já sabia que seria mais vantajoso. Posso negociar a compra de peças e ferramentas e, antes de abrir a oficina, peguei um empréstimo no banco para comprar o macaco hidráulico, onde levanto as motos, e o esmeril para acertar peças”, destaca ele, que revela jamais ter tido medo de investir no próprio negócio. “Nunca tive receio. Em breve, também quero ter uma loja na rua. É muito melhor ser o próprio patrão”, conclui.

Na pichação em uma casa no alto do morro do Andaraí, uma facção do tráfico desafia a UPP (Foto: Bernardo Tabak/G1)Na pichação em uma casa no alto do morro do
Andaraí, uma facção do tráfico desafia a UPP
(Foto: Bernardo Tabak/G1)

‘Um tapa na cara me levou a correr atrás’
Mesmo com algumas críticas ao modelo de pacificação, o presidente da associação de moradores, Bidu, exalta o expressivo aumento na legalização dos negócios na favela. “O Empresa Bacana formalizou a grande maioria dos comerciantes, além dos mototaxistas e daquelas pessoas que fornecem refeições, como quentinhas, salgadinhos e bolos”, destaca.

A história de Bidu como empreendedor, até chegar a se tornar dono do Depósito Amigos do Andaraí e do Bar dos Amigos, foi de muitas dificuldades. “Foi um tapa na cara que o meu pai me deu, quando tinha 11 anos, que me fez começar a correr atrás”, recorda. “Meu pai era viciado em jogo de cartas, e muitas vezes eu e meus dois irmãos menores passávamos fome. Para a gente sobreviver, carregávamos botijões de gás e material de construção para o pessoal da favela, para ganhar algum trocado”, lembra.

Dentro do depósito, Bidu planeja os próximos passos após se formalizar (Foto: Bernardo Tabak/G1)Dentro do depósito, Bidu planeja os próximos passos após se formalizar (Foto: Bernardo Tabak/G1)

“Certa vez, fui comprar cigarro para a mulher de um bandido. Não era nada demais, e ia ganhar um dinheirinho, mas meu pai não gostou e me deu um tapa na cara por causa disso”, conta Bidu. Após o episódio, ele saiu de casa. Acabou conseguindo trabalho em um armazém. “Carregava saco de batata, fardo de arroz. Atendia no balcão, recebia mercadoria no caixa e lavava banheiro”, recorda. “O casal dono do armazém me acolheu, e passei a morar na casa deles”, complementa.

Dono de dois estabelecimentos formalizados na comunidade
Dos 18 aos 22 anos, Bidu serviu no Exército. “Peguei a indenização que ganhei no quartel e montei um trailer-bar com minha ex-mulher. Ao mesmo tempo, tocava o depósito de bebidas”, conta. A formalização era algo impensável, por um motivo nada nobre. “O comércio no morro era achacado pelos traficantes. Como vou perder para o tráfico e também para o estado?”, indaga Bidu.

A primeira intenção de se legalizar foi após a chegada da UPP. O projeto Empresa Bacana, da prefeitura do Rio, que tem percorrido as comunidades pacificadas para ajudar na formalização de empreendedores, facilitou a inscrição de Bidu no programa Simples. “Consegui meu alvará e a inscrição no CNPJ (Cadastro Nacional de Pessoas Jurídicas)”, ressalta ele.

Hoje, Bidu comemora a evolução dos dois comércios que possui, onde emprega seis funcionários. “Antes de me formalizar, eu entrava em um banco e as pessoas nem me olhavam quando dizia que morava no Morro do Andaraí. Agora, dono de empresa, as pessoas te olham de frente”, finaliza.

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