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Futuro sem Martas? Brasil sofre em busca de base no futebol feminino

Vadão ressalta que para se montar elenco da seleção sub-15 muitas vezes é necessário fazer peneira. Marco Aurélio Cunha espera que Profut ajude a modalidade

Por Rio de Janeiro

Marta Brasil x Austrália - Mundial Feminino (Foto: Getty Images)Marta teve sua formação entre 2004 e 2009 na Suécia (Foto: Getty Images)

O Brasil não está sozinho no cenário ainda deficitário em relação à formação de uma base de qualidade e organização de clubes para o fortalecimento do futebol feminino. A América do Sul como um todo busca um maior engajamento na modalidade, o que, pelos números, fica clara a distância em relação a Europa, Ásia e também países como Estados Unidos e Canadá. No total, são 30 milhões de mulheres praticando o esporte em todo o planeta - 12% apenas são jovens e meninas. Na divisão desses milhões, a Uefa detém 20%, a Ásia 21%, Estados Unidos e Canadá, juntos, somam 53%. A Conmebol aparece com somente 6% e ainda dividindo o número com África, parte da Concacaf (sem EUA e Canadá) e Oceania, dados divulgados pela própria entidade sul-americana. Para se ter uma ideia, na CBF,  são apenas 1624 jogadoras com contrato ativo.

Os percentuais ficam óbvios ao se saber que somente em em 2015, a Confederação Sul-Americana passou a ter um departamento focado na modalidade. Lorena Soto, gerente do Desenvolvimento do Futebol Feminino da entidade, declarou que é o primeiro passo, mas não se conseguirá alterar a estrutura da noite para o dia. 

Lorena Soto, responsável pelo futebol feminino na Conmebol (Foto: Cíntia Barlem)Lorena Soto, responsável pelo futebol feminino na Conmebol (Foto: Cíntia Barlem)

- Como eu disse, ano passado a Conmebol começou com esse foco no futebol feminino e lançou um departamento. Em menos de um ano, já conseguiu parceria para o televisionamento total do torneio. Antes nem se sabia o que estava acontecendo...se o torneio se realizava no Brasil, Venezuela, nem que existia um torneio. Hoje há exposição. É um processo. Também não iremos conseguir mudar do dia para a noite. Um produto que está crescendo e está assegurando esses pequenos sucessos. Aqui no Brasil o talento é abundante, mas não há exposição da quantidade de talentos que existe ou a quantidade de jogadoras com talento que representam o Brasil - afirmou ao GloboEsporte.com.

O Brasil, aliás, tem um talento genuíno. No DNA, jogadoras como Marta, Cristiane, Formiga, Andressinha, Bia, Rafaelle e tantas outras. Mas os nomes surgem não pela base forte, mas pela qualidade abundante - duas medalhas de prata já foram asseguradas em Jogos Olímpicos. A camisa 10 da Seleção, por exemplo, teve sua formação na Suécia. Foi lá, entre os anos de 2004 e 2009, que teve todo o acompanhamento médico, físico na idade em que desenvolvia todo o seu corpo para sustentar a qualidade. O problema no Brasil ainda persiste e um hiato de qualidade pode ocorrer na próxima geração. Vadão comenta que a seleção sub-15 é montada para torneios através de grandes peneiras. Algumas vezes, meninas que nem tiveram qualquer treinamento mais profissional encaram atletas já com formação em andamento de países como Alemanha e Estados Unidos.

- A seleção sub-15 tem que fazer peneira para achar jogadoras que eventualmente possam ir para o Mundial e nunca jogaram profissionalmente para enfrentar Alemanha ou outras seleções. Essa é a nossa realidade. Não adianta 1000 projetos se as prefeituras e escolas não colocarem o futebol feminino no currículo. Nos outros países não é algo so esportivo, mas sim social - disse Vadão ao GloboEsporte.com

O processo não começa da noite para o dia. Na França, a Federação de Futebol do país levou seis anos para aumentar o número de jogadoras oficialmente registradas na entidade. De 2011 a 2016, o número passou de 54.184 a 103 mil, incluindo atletas da base. Lilia, uma menina de 13 anos, foi a número 100 mil. Clubes como Paris Saint-Germain, Lyon, Montpellier e Juvisy ajudam com categorias inferiores fortes e até mesmo a ativação de profissionais para um trabalho específico no feminino.

- Este é um momento importante, 100 mil licenciadas foi o principal objetivo de nosso mandato e foi atingido seis meses antes - disse Brigitte Henriques, ex-jogadora e atual secretária geral da FFF (Federação Francesa de Futebol) ao jornal Le Figaro.

Alex Morgan comemora gol diante da Costa Rica (Foto: Facebook)Alex Morgan começou carreira no futebol aos 14 anos (Foto: Facebook)

Nos Estados Unidos, as escolas e universidades têm papel decisivo. Alex Morgan sempre foi apaixonada por futebol, jogava desde pequena, mas começou a encarar como meta na carreira a partir dos 14 anos. Teve na Diamond Bar High School o apoio necessário. Logo depois, ingressou Universidade da Califórnia, em Berkeley. Ali, acabou sendo descoberta para a seleção sub-20.

- Eu me tornei apaixonada pelo futebol quando eu era nova, mas eu não fui realmente descoberta pela seleção americana até eu ingressar na Universidade da Califórnia em Berkeley. A Copa do Mundo Sub-20, no Chile, foi meu primeiro grande evento em 2008 e amei cada minuto - disse ela ao GloboEsporte.com.

A Alemanha adotou o processo em pirâmide, ou seja, a preocupação foi primeiramente com a base para depois focar na seleção principal - desde 2003, a equipe alterna a liderança do ranking da Fifa com os Estados Unidos. São seis categorias: sub-15, sub-16, sub-17, sub-19, sub-20 e sub-23. As meninas treinam juntamente com os meninos. Nos clubes, o processo é intenso. O Wolfsburg é considerado um dos times mais fortes da Europa, tendo vencido a Champions em duas oportunidades. 

No Brasil, as escolas, que teriam um papel fundamental, nem mesmo têm a educação física como uma rotina em seus currículos, apesar de, segundo o MEC (Ministério da Educação), consultado pelo GloboEsporte.com, a matéria ser facultativa somente em alguns casos (confira aqui a orientação na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional). Meninas que sonham com o futebol precisam procurar fora dos colégios outros meios de alcançar o sucesso. Muitas, sem apoio financeiro, não conseguem avançar mesmo com talento. Ex-jogadora da seleção brasileira, Duda Luizelli mantém uma escolinha paga que inclui desde a categoria sub-9 até adulta. Ela salienta que, diversas vezes, quando alguma aluna demonstra um talento maior, logo aciona as ex-colegas de profissão que moram nos Estados Unidos, Sissi e Taffarel. Ela afirma que algumas garotas até preferem times do interior de São Paulo, local ainda com potencial no país, mas são poucas até mesmo pela dificuldade de prosseguimento na profissão. 

- A gente trabalha bastante com Estados Unidos porque achamos que ir para São Paulo não muda nada. Mas algumas meninas querem. Nos Estados Unidos, elas podem já fazer inglês, colégio, faculdade. Quando tem uma menina que se sobressai entramos em contato direto. 

Duda acrescenta que, por exemplo, no seu time sub-11 há muitos talentos surgindo. A preocupação é que sigam tendo o futebol feminino como carreira para que outras Martas possam aparecer. Ela diz que faltam adversários. 

Meninas da equipe sub-11 da escola da Duda (Foto: Arquivo Pessoal)Meninas da equipe sub-11 da escola da Duda (Foto: Arquivo Pessoal)

- Temos um time sub-11. Esse time, tecnicamente, é muito forte. Se continuar junto vai ser o melhor do mundo. A parte técnica é fantástica. Tem no mínino umas 10 Martas. Mas o que nos falta são adversários - afirmou ela, que mantém as categorias no Parque Gigante, em Porto Alegre, mas sem participação do Inter no projeto.

Marco Aurélio Cunha assumiu em maio de 2015 como diretor de futebol feminino. Desde então, passou a dar maior voz à modalidade. Mas, para ele, há muito que evoluir. O dirigente acredita que o cenário poderá mudar com a aplicação da lei Profut, em que passa a ser tarefa dos clubes a criação de uma área para a modalidade em cada time. Mas ele ressalta que as equipes acabam assumindo o papel do Estado, que deveria colocar o esporte conjugado à educação nas escolas. Vadão tem a mesma opinião Acredita que com uma educação física forte o número de atletas de alta performance apareceria com maior rapidez. Mas não é o que ocorre.

- Você imagine como nós estamos no futebol em relação a Alemanha, Canadá, Estados Unidos. As gerações futuras dependem do trabalho de base, coisa que nós não temos e essa é nossa grande busca. Se não houver um envolvimento social, um plano de estado, governamental para que seja jogado nas prefeituras, escolinhas e até nas escolas, o que eu acho muito difícil no momento, porque estão abolindo até a educação física...Imagine você colocar só o futebol feminino para se jogar. Acho muito difícil, mas teria que ser dessa forma para que tivéssemos um desenvolvimento maior da modalidade e consequentemente um maior número de atletas disputando. Fica mais fácil para você filtrar e obviamente conseguir um número de atletas de alta performance com muito mais rapidez. Essa reposição seria muito mais eficiente - declarou Vadão.