Coluna
Artur Xexéo
Artur Xexéo Foto: O Globo

Quando o cinema fala de cinema

Se o trabalho dos Irmãos Coen pode ter uma definição, é de não se submeter a gêneros

A velha Hollywood exerce estranho fascínio sobre os cineastas americanos de maior prestígio. Eles fazem o cinema moderno, experimentam linguagens, querem passar um recado, mas, mais cedo ou mais tarde, rendem-se ao glamour do sistema de estúdios, dos contratos de sete anos, da construção de imagens, dos ídolos de matinês, dos campeões de bilheteria que marcaram o cinema até a década de 50 do século passado. Parece que esse é o tema, por exemplo, de “Café Society”, o Woody Allen mais recente que vai abrir o Festival de Cannes deste ano. E Allen já tinha se debruçado sobre o assunto em “A rosa púrpura do Cairo”, de 1985.

Cinema, da velha Hollywood ou não, é assunto que sempre é encontrado em filmografias mais extensas. E não só nos Estados Unidos. François Truffaut rodou na França seu “A noite americana”, de 1973, falando de um tipo de cinema que é mais típico de produções americanas que europeias. Seu arquirrival Jean-Luc Godard também criticou — com Godard, o cinema é sempre crítico — o então chamado “star system” em “O desprezo”, de 1963. Só para ficar na Europa, não é também de cinema que Fellini trata em “Oito e meio”, de 1963?

Pois está em cartaz um filme de um cineasta de prestígio — na verdade, dois — que volta a falar da Hollywood mítica dos anos 50. “Ave, César”, o mais recente trabalho dos Irmãos Coen, já pode entrar para a lista dos melhores filmes sobre cinema... ahnnn... do século XXI.

Ainda me lembro da surpresa que foi assistir ao primeiro filme dos Coen que chegou no Brasil. Era “Arizona nunca mais”, de 1987, uma das muitas novidades que o Cinema I apresentou aos cinéfilos do Rio. Era um filme... policial? Talvez, já que narrava a história do sequestro de um bebê e de uma perseguição.

O estranho em “Arizona nunca mais” é que a trama policial tinha muito, muito humor, a ponto de o filme poder ser identificado como uma comédia.

O sucesso de “Arizona nunca mais” fez com que os distribuidores tirassem das prateleiras o filme anterior da dupla, “Gosto de sangue”. O Cinema 1 perdeu o privilégio de exibir os filmes dos irmãos cineastas.

Lembro-me que assisti a “Gosto de sangue” no Ricamar, onde hoje está instalada a Sala Baden Powell. Fui imaginando que iria assistir a uma comédia e me surpreendi com um “film noir” com um dos maiores banhos de sangue que já vi no cinema.

Afinal, que tipo de cinema faziam esses irmãos que já eram diferentes por assinarem suas obras sempre em dupla? Desde então, os Irmãos Coen ganharam o mundo, já receberam quatro Oscars (três deles por “Onde os fracos não têm vez”, de 2008, e o quarto pelo roteiro de “Fargo”, de 1996) e não perderam a capacidade de surpreender. E, se o cinema deles pode ter uma definição, é de não se submeter a gêneros, estilos ou modismos. Eles fazem o cinema dos Irmãos Coen.

“Ave, César” é uma deliciosa comédia sobre bastidores das produções cinematográficas de 60 ou 70 anos atrás. É quase um filme de episódios interligados pela participação de um produtor de cinema em todos eles. É esse produtor, vivido por Josh Brolin, que resolve todos os problemas dos filmes e dos astros da fictícia Capitol Records. Se o espectador tiver intimidade com as muitas referências a estrelas de verdade da velha Hollywood, certamente vai se divertir mais. Como a personagem inspirada em Carmen Miranda, que o estúdio obriga a bancar a namorada de um canastrão que protagoniza filmes de caubói. Mas quem ainda se lembra que Carlota Valdez, como a personagem foi batizada, é também o nome da mulher misteriosa por cujo retrato Kim Novak é obcecada em “Um corpo que cai”? Não é fácil reconhecer no passado dos personagens de George Clooney e Ralph Fiennes — o galã Baird Whitlock e o cineasta Laurence Laurentz, respectivamente —, a mesma relação que tiveram Clark Gable e Vincente Minnelli. A DeeAnna Moran de Scarlet Johansson é imediatamente reconhecida como a acrobática Esther Williams. Mas o episódio em que o estúdio busca uma solução para a gravidez inesperada da atriz nadadora, tentando evitar que o mundo descubra que ela está para se tornar mãe solteira, foi baseado numa situação da vida de Loretta Young.

O novo filme dos Irmãos Coen é uma comédia sofisticada, despretensiosa que dá tanto prazer quanto folhear uma velha edição da revista “Cinelândia”. É ou não é uma surpresa?

Leia todas as colunas...