Saúde

Seis meses após aprovar texto para conter cesáreas, ANS altera norma

Gestantes que quiserem marcar data e hora do parto continuarão cobertas por planos
Dúvida de grávida. Vanessa Pinto, Renata Carvalho e Simone Oliveira defendem direito de escolher tipo de parto Foto: Antonio Scorza / Agência O Globo
Dúvida de grávida. Vanessa Pinto, Renata Carvalho e Simone Oliveira defendem direito de escolher tipo de parto Foto: Antonio Scorza / Agência O Globo

RIO - Em janeiro, a Agência Nacional de Saúde (ANS) aprovou uma resolução que tirava dos planos a obrigatoriedade de pagar por cesáreas eletivas — aquelas feitas sem indicação médica. Agindo assim, a agência pretendia enfrentar a “epidemia de cesáreas” que a Organização Mundial de Saúde (OMS) constatara no Brasil e também atender a uma rede de mulheres que, há anos, luta pela popularização do parto normal. Há seis meses, a medida administrativa foi vista como uma vitória por aqueles que apontam os riscos inerentes ao exagero de cesarianas. Nesta segunda-feira, no entanto, esses mesmos grupos apontaram um retrocesso no anúncio da ANS que pode, segundo eles, tornar a medida ineficaz.

Ao divulgar que a Resolução 368 entrava finalmente em vigor, a agência informou que as gestantes que quiserem marcar a data e a hora do nascimento de seus filhos continuarão cobertas por seus planos de saúde se assinarem um “termo de consentimento” sobre os riscos da cirurgia. No texto de janeiro, não há qualquer referência a esse “termo”. Em nota, a ANS nega ter feito mudanças no teor da resolução.

Na versão original do documento, a agência reguladora informa que o partograma — documento que reflete a evolução do trabalho de parto — seria indispensável para o pagamento da intervenção a partir de ontem. A mulher que não entrasse em trabalho não teria partograma e, em consequência, seria obrigada a arcar com os custos de sua cesárea eletiva — numa lógica parecida com o que já ocorre com cirurgias plásticas. Mas, em entrevista ao GLOBO, a gerente-geral de Regulação da ANS, Raquel Lisbôa, informou que, na prática, não será assim:

— Em todos os países, a paciente tem autonomia para decidir sobre seu parto. Aqui não será diferente. A cesárea feita a pedido continuará existindo, mas, agora, aumentaremos a informação para que a gestante tome essa decisão ciente do que está fazendo.

Raquel disse que a ANS trabalha na elaboração de um “detalhamento da Resolução 368” e que o texto deverá ser publicado “nos primeiros dias de julho”. De acordo com ela, o documento trará a possibilidade do “termo de consentimento”. Até a tarde de ontem, ele não estava pronto.

Grupos que acompanham o caso desde o início do ano acreditam que a mudança foi fruto da pressão de médicos e gestantes.

Em fevereiro, o Conselho Federal de Medicina classificou como um equívoco a ANS exigir a apresentação do partograma para o pagamento dos honorários do parto. A Associação de Obstetrícia e Ginecologia do Estado de São Paulo seguiu a mesma linha.

— Esta resolução foi concebida para reduzir o número de cesáreas feitas na saúde suplementar porque os números estão extremamente elevados. Mas ela desrespeita a livre autonomia do paciente, algo reconhecido no mundo inteiro — reclama César Eduardo Fernandes, diretor da entidade. — Do ponto de vista médico, para fazer uma cesárea eletiva, a mulher só precisa ter passado da 39ª semana de gestação.

CESÁREA CUSTA R$ 9 MIL

Fernandes reconhece que os médicos também se preocupam com o impacto financeiro da medida — e não apenas no bolso das mães.

— Uma operadora paga R$ 550 por parto, seja ele normal ou cesárea. O normal dura entre oito e 12 horas. A cesárea, quatro horas ao longo de três dias. Isso também precisaria ser debatido.

Renato Sá, chefe do setor de Obstetrícia e Medicina Fetal do Grupo Perinatal, viu com clareza o recuo da ANS. Disse que “os planos de saúde estão há tempos mandando carta dizendo que só vão pagar o parto se tiver o partograma” e que a mudança de posição da agência é notória.

— É um contrassenso você querer mudar essa conduta da noite para o dia com uma regulamentação. Você precisa de todo um trabalho de desconstrução do modelo atual da assistência obstétrica pra substituir esse modelo que prioriza a cesariana ao parto normal. Vale mais dar informação.

Ao lado dos obstetras, estão muitas gestantes.

— Eu não levanto bandeira a favor de cesárea nem a favor do parto normal. Minha bandeira é a da liberdade de escolha — diz a contadora carioca Simone Oliveira, que tem 32 anos e 6 meses de gestação. — Tenho o pleno direito de escolher por onde a minha filha vai sair, e ninguém pode interferir nisso.

Simone chegou a pedir a um hospital particular da Zona Oeste do Rio um orçamento para cesárea agendada. Levou um susto:

— Cobram R$ 9 mil, muito mais do que eu ganho por mês.

Renata de Carvalho, de 29 anos, e Vanessa Pino, de 32, trabalham na mesma empresa de Simone e também estão grávidas, de três meses e dez semanas, respectivamente. Fazem coro contra a resolução:

— Quero cesárea para não passar pelo processo de dor. Minha família me apoia, e isso não é uma questão de comodismo. É uma questão de opção — defende Renata.

— Eu nunca pensei em fazer parto normal e, agora, me sinto insegura — acrescenta Vanessa.

Segundo dados internacionais, o Brasil é o campeão mundial de cesarianas. Enquanto o índice recomendado pela OMS é de 15%, na rede privada do país, chega a 84,6%.

E foi para tentar reduzir essa cifra que, em 2010, o Ministério Público Federal (MPF) propôs uma ação civil pública contra a ANS. Nela, exigia, entre outros pontos, que o partograma fosse indispensável para a cobertura das cesáreas. Foi daí que surgiu a Resolução 368. Mas, diante da flexibilização anunciada ontem pela ANS, o MPF volta seus esforços para o campo judicial. A procuradora Ana Carolina Previtalli, de São Paulo, lembra que o Ministério Público não desistiu nem da causa nem da ação, que ainda aguarda sentença. As defensorias públicas também lamentam o movimento da ANS:

— A proposta da resolução era reduzir o número de cesáreas. Com a criação desse termo de consentimento, não vai reduzir coisa nenhuma. Teremos uma resolução com pouquíssima efetividade — queixa-se Dulcielly Nóbrega, defensora e coordenadora do Núcleo de Assistência Jurídica de Defesa da Mulher no Distrito Federal.

Para a Artemis, rede de mulheres que defende o parto normal e que acompanha o caso há anos, a existência de um termo é melhor do que nada, pois traz mais informações para a gestante, mas pode gerar um precedente ruim.

— Se a ANS abrir mão e liberar o pagamento de um procedimento desnecessário, dará abertura para cobrir cirurgias estéticas — pondera Ana Lúcia Keunecke, diretora Jurídica e de Negócios.

A resolução traz ainda outras duas novidades. Uma delas é que as operadoras de saúde serão obrigadas a fornecer o Cartão da Gestante e a Carta de Informação à Gestante. Nesses documentos, deverão constar todos os registros feitos durante o pré-natal. A ideia é que, com a informação constante nesses documentos, qualquer médico seja capaz de atender a gestante na hora do parto — não apenas aquele que a acompanhou durante a gravidez.

A terceira novidade levanta mais poeira. As operadoras também passam a ser obrigadas a divulgar, sempre que solicitado pela gestante, os percentuais de cirurgias cesáreas e partos normais feitos por cada estabelecimento de saúde e por cada médico credenciado. A ideia é municiar as gestantes com mais informações sobre aqueles que as atenderão no parto. Mas os médicos temem que, com isso, seja construído um ranking a partir de informações incompletas, pois os dados a que a gestante terá acesso serão restritos apenas a um plano.

— Para ser claro e educado, é a maneira mais burra possível de fazer isso — diz Marcelo Burlá, presidente da Sociedade de Ginecologia e Obstetrícia do Estado do Rio de Janeiro. — São as operadoras que vão liberar as taxas. Então, se um médico fez cinco cesáreas e um parto normal num plano, ele é cesarianista. Se fez diferente em outro, é outra coisa.