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Entenda o golpe militar na Turquia e o que ele significa para o mundo

Entenda o golpe militar na Turquia e o que ele significa para o mundo

Tentativa de militares de tirar Erdogan do poder lança a Turquia em incertezas e deixa o mundo ainda mais volátil

RODRIGO TURRER
16/07/2016 - 13h54 - Atualizado 18/07/2016 09h45
Turcos protestam contra o a tentativa de golpe militar na Turquia (Foto: OZAN KOSE / AFP)

Uma tentativa de golpe militar na Turquia terminou com 265 mortos e ao menos 2.839 militares presos. Depois de horas de caos provocado pela tentativa de golpe feita pelas Forças Armadas, o presidente da Turquia, Recep Tayyip Erdogan, disse que a situação do país estava sob controle. No saguão, voltou a dizer que uma minoria das tropas esteve por trás do plano e afirmou que os participantes serão severamente punidos por seu governo. "Uma minoria dentro das Forças Armadas felizmente foi incapaz de fomentar a unidade turca. O que foi feito é uma rebelião e uma traição. Eles vão pagar muito caro por sua traição à Turquia."

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Apesar de ter retomado o controle, não é possível afirmar que a situação esteja sob controle. Segundo relatos, ainda é possível ouvir tiros e bombas nas ruas da capital turca, Ancara, e da principal cidade do país, Istambul. O trauma das cenas de tanques invadindo as ruas e helicópteros e jatos militares sobrevoando as maiores cidades do país vai demorar para sair da cabeça dos turcos – mesmo depois de terem passado por golpes militares outras quatro vezes nos últimos 56 anos.

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Não é de hoje que Erdogan vem cultivando inimigos. Hoje com 64 anos, ele emergiu na política turca no começo dos anos 1990, como prefeito de Istambul. Na ocasião, articulou uma coalizão de partidos de orientação conservadora islâmica, que permitiu que ele fundasse o Partido Justiça e Desenvolvimento, AKP, em 2001, e chegasse ao poder em 2002. Para isso, adotou um discurso pró-Ocidente e defendeu um discurso moderado, conservador nos costumes, mas “paz e amor” nos outros setores.

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Nos últimos cinco anos, Erdogan, porém, passou a tentar ampliar seus poderes de todas as formas. O ápice de sua guinada autoritária ocorreu em 2013, quando começou a formular tentativas de se manter no poder. Ao deixar o cargo de premiê, em 2014, tornou-se presidente. Sua meta, desde então, passou a ser um referendo popular que transforme o sistema político do país, de parlamentarismo em presidencialismo – e lhe garanta poderes executivos. Embora, no papel, Erdogan, como presidente, tenha apenas funções cerimoniais de chefe de Estado, na prática, ele é quem governa o país.

>> A Turquia no fogo cruzado

De 2013 para cá, Erdogan reprimiu com brutalidade manifestantes contrários a seu governo e a um polêmico projeto de desenvolvimento urbano centrado no Gezi Park, em Istambul. Perseguiu, fechou e prendeu veículos de imprensa de oposição. A Turquia é o quarto país com mais jornalistas presos no mundo. Acusado de envolvimento em um milionário escândalo de corrupção, deu início a uma caça às bruxas nas forças policiais, no Ministério Público e no Judiciário, que levou a expulsão de dezenas de policiais e procuradores. Em um único decreto presidencial, meses atrás, Erdogan removeu dos postos  3.700 juízes e promotores.

>>Os golpes turcos chegam ao século XXI

Diante de qualquer oposição, Erdogan acusa seus críticos de ligação com o movimento popular do clérigo turco Fetullah Gülen. Chamado informalmente de Hizmet (Serviço, na tradução do turco), o movimento foi essencial para a ascensão de Erdogan e do AKP no início dos anos 2000, mas os dois grupos se distanciaram. Hoje, Gülen não só é desafeto mortal de Erdogan, como foi incluído na lista oficial de terroristas do país (o clérigo vive nos Estados Unidos desde 1999). Erdogan se diz alvo de um complô orquestrado pelo movimento de Fetullah Gülen, a quem ele acusa de formar “um Estado paralelo” dentro das instituições do país, com a intenção de dar um golpe.

O problema de Erdogan, antes e agora, e o embate de duas Turquias. Um político ultraconservador e nacionalista, Erdogan produziu crescimento econômico, e seu sucesso garantiu uma forte base eleitoral para o AKP, que se tornou a força dominante na política turca. Em todos os pleitos realizados na última década, a sigla oscilou entre 40% e 50% das intenções de voto. Esse eleitorado é formado por conservadores turcos, religiosos praticantes que por décadas foram subjugados pela elite secular ligada aos militares. Foram eles que, pela primeira vez na história turca, tiveram voz ativa na política, que saíram às ruas na madrugada de sexta-feira para sábado (16) para exigir a volta de Erdogan ao poder.

Se os apoiadores de Erdogan estão dispostos a morrer por ele, seus opositores o odeiam. Esse racha na sociedade turca se deve, em grande parte, à própria estratégia eleitoral de Erdogan, que brutalizou seus adversários politicamente ao longo de uma década. "A estratégia eleitoral de Erdogan é baseado em uma premissa: espancar aqueles que discordam da visão de mundo conservadora do AKP para escorar a base de direita do partido", afirma o cientista político Soner Cagaptay, autor do livro The rise of Turkey: The twenty-first century’s first muslim power. "Essa tática explica sua decisão, em julho, de declarar guerra contra o Partido dos Trabalhadores do Curdistão (PKK), antes um bastião de apoio do AKP." Os curdos lutam por independência regional há décadas.

A opressão dos curdos, no entanto, serviu apenas para engrossar as fileiras da oposição. Ao abandonar Erdogan, os curdos se juntaram a outros grupos que sofrem com a opressão política, como os liberais seculares, os comunistas e socialistas, e os alevitas, um ramo liberal do islã xiita. Para piorar, os curdos, ao contrário de outros opositores, estão dispostos a pegar em armas. À esse caldeirão explosivo se somou a intensificação da atuação da Turquia na Síria, que levou o Estado Islâmico a promover uma série de atentados no país. Somados atentados do PKK com os do EI, em um ano foram oito grandes ataques, que deixaram pelo menos 267 mortos e mais de 1.000 feridos.

>>Por que a Turquia virou um alvo contumaz dos terroristas

A divisão na Turquia ficou explícita na madrugada de sexta-feira para sábado. Os militares rebeldes afirmaram estar destituindo Erdogan porque "as tradições seculares do país foram corroídas pelo governo de Erdogan, que tem adotado medidas autoritárias contra a liberdade de imprensa e perseguido jornalistas e juízes". Mas a tentativa de golpe não resistiu e terá sérias consequências. O ministro do Interior da Turquia, Efkan Ala, ordenou a destituição de cinco generais e 29 coronéis desde o início da tentativa de golpe. Mais de 2.800 militares já foram presos pelas forças de segurança turcas. Além disso, autoridades turcas removeram neste sábado 2.745 juízes de seus cargos, além de cinco membros do alto conselho judicial do país.


Nos próximos dias e meses, Erdogan vai fazer um expurgo nas Forças Armadas e em todos os campos da oposição, e pode, finalmente, atingir seu objetivo: conseguir 60% de votos em um referendo popular para transformar o sistema político parlamentarista em um regime presidencialista. Erdogan se tornaria uma espécie de Vladimir Putin, com poderes quase totais. Para qual caminho isso pode levar a Turquia ainda é uma incógnita. Mas não importa quem vença a batalha pelo poder no país, há dois perdedores notórios: a estabilidade regional e a democracia turca.

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