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Por Jamille Bullé e Lucas Loos — Rio de Janeiro

Lucas Figueiredo/CBF

O Brasil entrou em campo para um amistoso contra a Arábia Saudita, na última sexta, exatos dez dias após o desaparecimento do jornalista Jamal Khashoggi no consulado do país em Istambul e pouco mais de um mês depois de um ataque aéreo dos sauditas matar 29 crianças no Iêmen. Nesta terça-feira, repete a dose em Jedá, agora para fazer o Superclássico contra a Argentina. Enquanto o país tenta passar uma imagem de progresso, usando inclusive a imagem da seleção brasileira, prisões arbitrárias de ativistas e violações dos direitos humanos marcam a contradição em solo saudita.

As recentes medidas tomadas pelo príncipe herdeiro Mohammed bin Salmán foram vistas pelo mundo como evolução em um país tão conservador. As mulheres conseguiram o direito de dirigir e frequentassem estádios na Arábia Saudita, por exemplo. No entanto, os sauditas lidam com uma realidade que se mostra mais dura no país, especialmente para defensores de direitos humanos.

- No meu meio, de pessoas árabes que frequentaram ou estudam o Oriente Médio, fala-se muito da Arábia Saudita. E fala-se mal. Representa tudo de ruim e todo esse preconceito com o mundo árabe. E contra os muçulmanos. O islã praticado e difundido pela Arabia Saudita, o Wahabismo, é a vertente mais radical da religiao. Em 70, era quase motivo de chacota. Mas, com os petrodólares, a Arábia Saudita se aproveitou da vulnerabilidade de outros locais, financiando escola e educação, e acabou doutrinando através dessa vertente radical do Islã, gerando movimentos radicais como o ISIS e a Al-Qaeda - disse o jornalista brasileiro de origem libanesa Fernando Kallás, que se recusou a participar da cobertura da Seleção no país.

"Eu tinha uma professora no Líbano, que tinha uma frase muito boa. Ela falava que a Arábia Saudita é o câncer do Oriente Médio. É um mal que vai se espalhando. Por conta da capacidade econômica que tem para difundir sua vertente radical do islã e praticar crimes contra a humanidade", completa Kallás.

Canarinho Pistola em deserto na Arábia Saudita para amistosos da Seleção — Foto: Lucas Figueiredo/CBF

Os protestos dos jornalistas (e do ex-jogador francês Cantona - leia mais abaixo) contra a presença da Seleção em solo saudita têm fundamento. Segundo a ONU, desde maio, 15 ativistas foram presos de forma "aparentemente arbitrária" no país, incluindo seis defensoras de direitos femininos - sendo uma delas Hatoon al-Fassi, uma das primeiras mulheres a tirar carteira de motorista no país. As Nações Unidas informam, ainda, que a maioria dos presos estão sem acesso à comunicação e têm paradeiro desconhecido.

Especialista em Oriente Médio e Professor de Segurança Internacional e de Geopolítica do Instituto de Relações Internacionais e Defesa da UFRJ, Fernando Brancoli explica a Arábia Saudita vem buscando uma reinvenção, por acreditar que continuar sendo dependente do petróleo seria prejudicial a médio ou longo prazo.

- Uma tentativa de modernização foi liderada pelo príncipe Mohammed bin Salmán, que fez um tour pelo mundo tentando mostrar que a Arábia está pronta. A maior prova seria a autorização para as mulheres poderem dirigir. Houve uma aproximação com (Donald) Trump. Mas temos visto que isso fica só no discurso. Mulheres podem dirigir, mas muitas ativistas foram presas. Há a guerra ao Iêmen, com violações nos direitos humanos. O governo teria gasto milhões de dólares pra parecer moderno mas vemos que segue como regime fechado - disse Brancoli, em entrevista ao Globoesporte.com.

E a seleção brasileira?

O professor destaca que o poder econômico da Arábia Saudita pesa para que países sejam mais benevolentes e adotem a postura que denominou como "ver e não olhar". Brancoli aponta as relações comerciais entre o Brasil e o país, um grande comprador de carne halal - quando o animal é abatido segundo os princípios muçulmanos - e de armas, principalmente as não-letais.

- O Brasil entra nessa história pelo caminho econômico e pelo lado cultural. A Seleção está jogando na Arábia porque o governo vem usando o futebol como uma força para mostrar a modernização do país. O Brasil joga lá não é porque o estádio é ótimo, mas porque pagam para o Brasil jogar lá. O Brasil e Argentina também vai ser lá. Existem questões econômicas. A Arábia patrocina para que esses países joguem lá. Mas, no futuro, com essa situação política, podemos imaginar seleções ou jogadores se recusando a jogar lá.

Estádio King Abdullah receberá Superclássico entre Brasil e Argentina — Foto: Bruno Mesquita/CBF

Com raízes árabes, Fernando Kallás morou três anos em Beirute e estudou ciências políticas com ênfase em radicalismo islâmico. Hoje envolvido especialmente no mundo esportivo (atualmente ele é editor de futebol internacional do jornal espanhol AS), ele abriu mão de participar da cobertura da seleção brasileira na Arábia Saudita, sobretudo por entender que "é preciso chamar a atenção para o mal que o país representa para o Oriente Médio".

- O jornal não tem previsão de cobertura de seleção. Eu, como editor de futebol internacional, tenho autonomia para decidir. Se eu trabalhasse no Brasil, provavelmente mandariam outro colega. Por isso digo que escolhi de livre e espontânea vontade. Fui nos últimos nos EUA e muito provavelmente irei no próximo, em Londres. Eles gostam de que se faça uma cobertura mais próxima da seleção brasileira, mas tenho autonomia - explicou o jornalista.

Fora do Brasil, mesmo que não exista necessariamente uma comoção, há quem critique a participação da Seleção nos amistosos contra os donos da casa e a Argentina em solo saudita. O ex-jogador francês Eric Cantona criticou a CBF pelas partidas, alfinetando, ainda, eleitores do candidato à presidência Jair Bolsonaro (PSL).

- Quando vejo a seleção brasileira aceitando jogar um amistoso com a Arábia Saudita, na última noite - por muito dinheiro, tenho certeza -, posso entender o porquê de uma grande parte da população brasileira pretende votar em Bolsonaro - disse Cantona.

Donos da segunda maior reserva de petróleo do mundo, os sauditas usam a presença da Seleção para vender outra imagem. Dois dias antes do amistoso contra a Argentina em Jedá, os jogadores tiveram uma noite de turistas na cidade, após o treino forte comandado pelo técnico Tite. O grupo participou de um tour organizado pela federação local, incluindo um jantar em um restaurante local, próximo ao deserto de Jedá.

No Instagram, o atacante Neymar publicou uma foto ao lado do meia Renato Augusto e do zagueiro Marquinhos no deserto, todos usando um assessório típico dos árabes. Na entrevista coletiva desta segunda-feira, o capitão da seleção brasileira foi questionado sobre essas críticas, mas preferiu não se aprofundar num tema político.

"É difícil falar sobre algo que não tenho domínio. Viemos aqui para jogar futebol e não estamos sabendo de nada" disse Neymar.

Neymar diz que não está ciente de questão política na Arábia Saudita

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Visibilidade após jornalista desaparecer

A questão humanitária na Arábia Saudita ganhou maior projeção internacional após o desaparecimento do jornalista Jamal Khashoggi. Crítico ao governo de Riad, Khashoggi decidiu deixar o país em 2017, por medo de ser preso, após o príncipe Mohamed bin Salmán iniciar o combate a dissidentes sauditas.

No início do mês, Jamal Khashoggi teria ido ao consulado da Arábia Saudita na Turquia para pegar documentos para se casar. Autoridades da Turquia afirmam que contam com gravações de áudio que mostram o interrogatório, tortura, morte e esquartejamento do corpo do jornalista dentro do consulado.

- Ao mesmo tempo que a seleção brasileira jogar em Riad contra a Arábia Saudita, Hatice Cengiz não torce por um time de futebol. Torce para que o sanguinário regime de Riad não tenha matado seu noivo, Jamal Khashoggi, um jornalista dissidente que escrevia excelentes artigos criticando as atrocidades da ditadura saudita, não muito diferente do que eu faço. Ele desapareceu ao entrar no consulado da Arábia Saudita em Istambul. Segundo autoridades turcas, foi morto e esquartejado - criticou o jornalista Guga Chacra, comentarista da GloboNews e da TV Globo em NY, em sua coluna no jornal O Globo.

Arábia Saudita ganhou visibilidade internacional após desaparecimento de Jamal Khashoggi — Foto: Murad Sezer/Reuters

A Arábia Saudita afirma que as acusações "não têm fundamento", mas não mostrou provas de que Khashoggi tenha deixado o prédio. Câmeras de segurança mostram o jornalista entrando no local. Brancoli acredita que o episódio pode ter consequências diplomáticas para o país.

- São acusações muito graves, e a Arábia não teve explicações plausíveis. Trump falou que não abriria mão dos acordos com armas. Mas grupos não-estatais, ONGs e empresas podem desistir de ter relações. Uma série da instituições estão desistindo de participar do fórum de investimento em Riad - explicou o professor.

Participação na guerra do Iêmen

De acordo com dados da ONU, pelo menos 1.248 crianças morreram em ataques da Arábia Saudita, em apoio à coalizão sunita, que se opõe aos rebeldes xiitas, contra o Iêmen. Neste momento de guerra, bloqueios comerciais impedem que milhões de pessoas tenham acesso à ajuda humanitária, enviada via portos e aeroportos.

Um dos episódios mais marcantes da guerro do Iêmen foi o ataque a um ônibus escolar, que matou 29 pessoas (veja no vídeo abaixo). Na ocasião, a calizão árabe liderada pela Arábia Saudita afirmou que o ataque foi uma "operação militar legítima".

Bombardeio atinge ônibus com crianças no Iêmen

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As Nações Unidas classificam a situação no país como a pior crise humanitária do mundo, já que além das mortes por conta da guerra, cidadãos estão perdendo a vida por conta da fome e de uma epidemia de cólera - ambas ampliadas pela falta de acesso a alimentos e medicamentos.

A situação no Iêmen - um dos países mais pobres do mundo - está perto de se tornar a maior crise de fome no mundo em 100 anos, de acordo com a ONU.

Brancoli explica que a guerra contém contextos sociopolíticos mais abrangentes. O grupo separatista no Iêmen é encarado como uma ameaça pela Arábia Saudita pelo fato de ser ligado ao Irã, inimigo histórico dos sauditas.

- A Arábia Saudita vem sendo acusada de não diferenciar quem ataca, matando tanto civis quanto combatentes. Muitos dizem que é uma espécie de Vietnã, uma guerra sem fim, meio sem objetivo. Isso tem provocado também acusações no cenário internacional, de que não respeitam os direitos humanos e só queriam acabar com esse inimigo, independentemente do preço. Muitos civis morrem, o que reforça a ideia de que a Arábia Saudita não se compromete com a questão dos direitos humanos.

Veja as informações da Seleção para o duelo:

  • Local: estádio King Abdullah, em Jedá
  • Data e horário: terça-feira, às 15h (de Brasília)
  • Provável escalação: Alisson, Danilo, Marquinhos, Miranda e Filipe Luís; Casemiro; Arthur (Fred), Renato Augusto, Coutinho e Neymar; Firmino. Técnico: Tite
  • Reservas: Ederson, Fabinho, Militão, Pablo, Alex Sandro, Walace, Fred (Arthur), Malcom, Lucas Moura, Richarlison e Gabriel Jesus
  • Arbitragem: Felix Brych, auxiliado por Mark Borsch e Stefan Lupp. No VAR: Gunter Perl e Robert Hartmann (todos da Alemanha)
  • Transmissão: TV Globo (narração de Galvão Bueno, comentários de Casagrande, Júnior e Arnaldo Cézar Coelho, reportagens de Tino Marcos e Marcos Uchôa); SporTV (narração de Luiz Carlos Jr., comentários de Muricy Ramalho e Lédio Carmona, reportagens de Mauro Naves) e GloboEsporte.com
  • Tempo Real: GloboEsporte.com, a partir de 14h

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