Saúde Coronavírus

Covid-19: Profissionais de saúde compartilham dramas no atendimento a moradores de rua

Em São Paulo, especialistas acreditam que número de infectados e mortos entre essa parcela da população seja subestimado nas estatísticas
Osmar Alves e Wilson Da Hora são atendidos por agentes de saúde no bairro da Mooca, em São Paulo Foto: Edilson Dantas / Agência O Globo
Osmar Alves e Wilson Da Hora são atendidos por agentes de saúde no bairro da Mooca, em São Paulo Foto: Edilson Dantas / Agência O Globo

SÃO PAULO — Além das dificuldades básicas do dia a dia enfrentadas por pessoas que vivem nas ruas, o isolamento social e a falta de acesso à higiene para esse público tornam essa parcela da população ainda mais vulnerável diante da pandemia de Covid-19. Relatos de assistentes sociais, médicos e enfermeiros revelam o drama de quem, muitas vezes, não consegue acesso a cuidados básicos de saúde.

Teste: Quem é você na fila da vacina?

Segundo o último Censo da População de Rua da Prefeitura de São Paulo, 24.344 pessoas vivem nessas condições na capital paulista. Durante a pandemia, alguns deles foram atendidos pelo enfermeiro Caio Brandão, de 25 anos. Ele trabalhou pelo programa Médicos Sem Fronteiras durante o pico da pandemia da Covid-19 na maior cidade da América Latina, entre abril e julho de 2020. Segundo ele, integrar o atendimento mental, físico e social foi o maior desafio durante o período.

— É uma situação de muita vulnerabilidade. Pessoas com questões sociais, econômicas, mentais e clínicas. A informação que eles têm é de que a pandemia é bem letal, então se sentem um sintoma leve acabam não enxergando como Covid, o que dificulta o isolamento e o atendimento. Não podemos obrigar ninguém a nada, e eles apresentavam certa resistência ao tratamento — lembra.

Equipe de assistência social do Centro Social Nossa Senhora do Bom Parto em ação no bairro da Mooca, em São Paulo Foto: Edilson Dantas / Agência O Globo
Equipe de assistência social do Centro Social Nossa Senhora do Bom Parto em ação no bairro da Mooca, em São Paulo Foto: Edilson Dantas / Agência O Globo

Por meio do Médico Sem Fronteiras, Brandão se juntou à equipe de saúde do Consultório na Rua, projeto da Prefeitura de São Paulo existente há 16 anos, que busca atender moradores em situação de rua. Pouco antes da pandemia, o projeto foi ampliado. O grupo passou de 338 profissionais em atendimento para 595, em 25 pontos da cidade.

— Eu buscava os casos (de coronavírus) entre os moradores de rua e selecionava os que eram elegíveis para o isolamento, com objetivo de reduzir o dano, comer adequadamente, tomar um banho, conseguir dormir debaixo de um teto. Quando o morador de rua aceitava fazer o teste, ficava tudo bem, mas geralmente estávamos todos paramentados, parecendo um robô da Nasa. Eles tiveram pânico no começo, não foi fácil — lembra Brandão.

Diálogo e atendimento

Para a assistente social Marta Regina Marques Akiyama, coordenadora do Consultório na Rua, que trabalha em parceria com o Centro Social Nossa Senhora do Bom Parto, a notícia da chegada da pandemia gerou pavor no início.

— Pensávamos que essa população de rua seria dizimada em São Paulo. Todas as orientações da Organização Mundial da Saúde para que as pessoas não contraíssem ou não morressem de Covid não cabiam à população de rua. Não tinha como fazer isolamento. Eles ficam um mês com a mesma roupa. Os parques e restaurantes estavam fechados, como eles iam comer, beber água, se lavar? Nenhuma orientação cabia.

No entanto, ressalta, o acompanhamento diário pelo Consultório na Rua conseguiu reduzir o número de mortes dessa população por Covid:

— Todos os agentes de saúde são ex-moradores de rua, o que facilitou muito o diálogo e o atendimento. E eles tiveram muito medo de morrer. Tenho relato de muitos falando que o vírus ia matar, então qualquer coisa diferente que sentiam, até mesmo uma dor de cabeça, acabavam procurando atendimento — explica Marta.

Dados levantados pelo projeto Consultório na Rua apontam que 1.132 pessoas em situação de rua apresentaram sintomas da Covid-19 desde o início da pandemia. Desses, 374 testaram positivo. O número de óbitos chegou a 31, o que equivale a 8% de mortalidade.

Especialistas ouvidos pelo GLOBO, entretanto, acreditam que tanto o número de moradores que já se infectaram quanto os óbitos podem estar subestimados. Com o impacto econômico da Covid, afirmam, há a possibilidade de que tenha aumentado também a população sem teto.

Atualmente, há 14 mil moradores cadastrados no Consultório na Rua. Essa população, explica Marta, é a que tem comorbidades e precisa de acompanhamento médico constante. Dos 31 óbitos registrados no grupo, todos ocorreram em hospitais, afirma.

Óbitos e vacinação

Não por acaso, as mortes por Covid entre aqueles que moram na rua afetam desproporcionalmente homens. Das 31 mortes registradas até agora em São Paulo, apenas quatro foram de mulheres.

Para Ivan França Júnior, infectologista e professor da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo, embora o número de casos e de moradores de rua possam estar subestimados, os dados indicam que a população de rua é muito afetada pela doença, mesmo que não seja necessariamente seja considerada uma grande disseminadora do vírus.

No final de dezembro, ao lançar o Programa Nacional de Imunização, o Ministério da Saúde incluiu as pessoas em situação de rua entre os grupos prioritários de vacinação. O programa, cita, entretanto, que a disponibilidade e o cronograma de vacinação dessa população ainda serão avaliados.

— Infelizmente, a maioria das pessoas evita contato com moradores de rua, evitam tocar até. A prioridade deles na vacinação seria, então, para evitar mortes, assim como com idosos. Idosos não são super-disseminadores, não vão para o bar, para festas, mas são super-afetados — afirma.

Na visão de Ligia Bahia, especialista em Saúde Pública da UFRJ, as pessoas em situação de rua deveriam sim figurar entre os grupos prioritários da vacina por conta da vulnerabilidade social:

— Eles são vulneráveis por conta do modo de vida. São pessoas que se agrupam, que têm o hábito de dormir agrupado até mesmo para se proteger, estabelecem relações com outros moradores de rua. Então há uma certa aglomeração natural. São pessoas de várias faixas etárias, portanto pode haver transmissão dos mais jovens para os mais idosos na rua. São pessoas que estabelecem muitos contatos, e isso os torna mais vulneráveis aos riscos de transmissão. Em vez de estarem isolados, eles estão mais expostos. O fato de não terem à disposição máscaras para usar, assim como meios para higienizar as mãos. Parte desta população tem comorbidades como a tuberculose, que os deixa mais fragilizados diante da Covid-19.

Para Alexander Biondo, professor titular de zoonoses do Departamento de Medicina Veterinária da Universidade Federal do Paraná (UFPR), que participa de um grupo que faz testes de Covid-19 em populações vulneráveis, como pessoas em situação de rua, mulheres encarceradas, indígenas, concorda que as pessoas que estão na rua deveriam ser prioridade na vacinação, no entanto, a distribuição de vacinas deveria ser pautada em dados de retirados de testagem em massa, para entender em quais locais e grupos deveria haver maior urgência.

— Levando em conta a questão da vulnerabilidade, o morador de rua deveria ser grupo prioritário de vacinação contra o coronavírus. Mas acho que deveria haver um estudo para identificar se a doença já esteve presente ali, se aquelas pessoas são sobreviventes da Covid-19 ou se ainda não pegaram, para aí determinar em quais regiões priorizar a vacinação. Essa é a mesma lógica que deveria ocorrer com outros grupos vulneráveis, como indígenas e a população carcerária. Mas antes deles, quem precisa ser vacinado são os profissionais que entram em contato com esses grupos e os que serão responsáveis por aplicar as vacinas, para que o momento da vacinação não seja um vetor de propagação do vírus — explica Biondo.

Pesquisador da Fiocruz e coordenador do Infogripe, Marcelo Gomes também aponta que os moradores em situação de rua são uma população vulnerabilizada importante. Ele lembra, entretanto, que ao contrário de indígenas aldeados, quilombolas e ribeirinhos, a vacinação de moradores de rua pode exigir uma busca ativa por pessoas nessa situação, o que aumentaria o desafio logístico.

— A busca ativa gera um problema para a equipe que é vacinar essa população e rejeitar os demais que residem no mesmo local. O ideal era ter vacina suficiente em relativamente pouco tempo para que justamente pudéssemos atender todas essas populações com o mínimo de dificuldade operacional por esses fatores  externos — afirmou.

A prefeitura de São Paulo informou que os programas Consultório na Rua e Redenção, que prestam assistência às pessoas em situação de rua, têm buscado ampliar suas ações.

"Para o enfrentamento da Covid-19, as equipes têm intensificado ações de abordagem com orientação sobre o novo coronavírus, prevenção, sinais e sintomas da doença. Além disso, tem sido realizada uma busca ativa de sintomáticos em locais de maior concentração de pessoas em situação de rua e monitoramento dos suspeitos/confirmados, para posterior encaminhamento aos Centros de Acolhida", informou a prefeitura, em nota.

Ainda de acordo com a prefeitura, o morador de rua com diagnóstico suspeito ou confirmado de coronavírus atualmente recebe atendimento no Clube Tietê, na região da Luz.