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Camisa Única: quando o México se vestiu de Cruzeiro-RS na Copa de 50

Clube gaúcho cede uniforme para Seleção em duelo contra a Suíça nos Eucaliptos

Por Porto Alegre

 


Bem que pode parecer lenda urbana ou conto de ficção do mundo da bola, mas há exatos 66 anos a seleção do México abandonou o tradicional vermelho, verde, branco e se agarrou ao azul e branco listrado do Cruzeiro de Porto Alegre. O curioso fato aconteceu numa tarde ensolarada, mas também gélida, do inverno gaúcho, de 2 de julho de 1950, na antiga moradia do Inter, o Estádio dos Eucaliptos. Trata-se de um caso raríssimo em mundiais e que é recontado agora pelo GloboEsporte.com na série “Camisa Única”.

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Como mexicanos e suíços já haviam sofrido nas mãos de Brasil e Iugoslávia, chegaram para o confronto, válido pela última partida do Grupo 1, sem mais chances de seguir no Mundial. Além de tudo, um inconveniente: as duas esquadras atuavam de vermelho, sem opção de fardamento alternativo (o México adotaria o verde posteriormente). 

México atua com a camisa do Cruzeiro-RS pela Copa de 50 (Foto: Arquivo do Cruzeiro-RS)México atua com a camisa azul e branca do Cruzeiro-RS pela Copa de 50 (Foto: Arquivo do Cruzeiro-RS)


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cara ou coroa

Historiador e jornalista Carlos Matzenbacher (Foto: Diego Guichard)Historiador e jornalista Carlos Matzenbacher
(Foto: Diego Guichard)

A primeira opção para viabilizar a partida seria o clube detentor do estádio ceder o "terno" local. Só que o Inter também é rubro, o que inviabilizou essa alternativa. Neste caso, as possibilidades seguintes eram os cerúleos do Grêmio e Cruzeiro-RS, com vantagem ao segundo pela proximidade de poucas quadras do Estádio da Montanha com os Eucaliptos. Assim, seria bem mais simples buscar o material de jogo na casa do Estrelado do que na residência tricolor.  

A resolução foi arquitetada num encontro entre dirigentes das equipes e representantes da Confederação Brasileira de Desportos (CBD), extinta em 1979 para se tornar embrião da CBF. De acordo com o historiador e jornalista Carlos Matzenbacher, a decisão de quem utilizaria o primeiro uniforme foi na praticidade clássica do “cara ou coroa”. Embora o México tenha vencido o sorteio, optou por ceder o direito ao time adversário. Uma gentileza aos suíços.  

– A coisa é muito simples. Naquele tempo, os clubes não tinham duas ou três camisetas. As seleções não tinham uma alternativa. O campo mais perto era do Cruzeiro, onde fica localizado o cemitério João XXIII. A escolha foi por proximidade. As novas camisas não tinham o símbolo do Cruzeiro-RS, já que o escudo era fixado na hora – explica o historiador, que também é ex-dirigente do Cruzeiro e produz dois livros sobre o clube.

Os registros daquela época são raros e escassos. Ninguém conhece, por exemplo, o paradeiro daquelas blusas do Cruzeiro e que seriam relíquias nos dias atuais. O fato é lamentado pela diretoria atual do clube gaúcho. 

– Infelizmente essa camiseta sumiu do mapa, não sabemos onde foi parar – comenta Dirceu de Castro, o presidente do Cruzeiro-RS. 

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festa suíça

eucaliptos inter copa 1950 (Foto: Reprodução)Eucaliptos recebeu três jogos da Copa de 50  (Foto: Reprodução)

O uniforme listrado verticalmente em azul e branco não deu sorte aos mexicanos, que ainda manteram as meias e calções originais. As 3.580 mil almas que foram ao Eucaliptos testemunharam a Suíça superar o adversário por 2 a 1. O México até contou com mais posse de bola, porém falhou na pontaria, requisito básico para o sucesso em uma partida.  

Logo aos 12 minutos, o zagueiro Gutierrez afastou para a entrada da área e permitiu a René Bader abrir o placar em chute cruzado de canhota. No fim do primeiro tempo, Tamini recebeu livre na área e chutou forte para ampliar o marcador. O histórico goleiro Antonio Carbajal, que disputou as Copas de 1950, 1954, 1958, 1962 e 1966, chegou a resvalar na bola, mas ela entrou após rebater no poste. 

A um minuto do término da partida, o gol de honra. Saiu dos pés de Horacio Casarín, aquele que seria um dos maiores goleadores da história do Campeonato Mexicano, com uma potente batida de dentro da grande área. O triunfo, no entanto, foi suíço, com uma fervorosa torcida que comemorou com fogos de artifício lançados ao céu. 

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Repeteco em 1978

Não foi a única vez que uma seleção precisou trocar de cor com um clube. O episódio se repetiu na Copa de 1978, na vizinha Argentina. Diante do impasse de França e Hungria, que atuavam de branco, o Kimberley, pequeno clube de Mar del Plata, ofereceu sua camiseta em listras verticais em verde e branco. E então Michel Platini, no auge aos 22 anos, atuou pela equipe francesa, mas com uma camisa semelhante à do Juventude. 

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listras mantidas

cruzeiro-rs, são paulo-rs, vieirão, campeonato gaúcho, gauchão, 2016 (Foto: José Haag / EC Cruzeiro / Divulgação)Cruzeiro escapou do rebaixamento neste ano 
(Foto: José Haag / EC Cruzeiro / Divulgação)

Fundado em 14 de julho de 1913, o Cruzeiro despontou como a terceira força do futebol gaúcho, atrás da dupla Gre-Nal. Sagrou-se campeão gaúcho uma única vez, em 1929. Em 1941, inaugurou o Estádio da Montanha, no bairro Medianeira. A arena concorreria com os Eucaliptos para sediar a Copa de 50. Foi o primeiro clube do RS a fazer uma excursão pela Europa. 

O clube chegou a anunciar recesso do futebol em 1979 e voltou em 1991. Desde 2010, passou a erguer a Arena do Cruzeiro, em Cachoeirinha – cidade em que se estabeleceu.

Em 2015, chegou às quartas de final do Gauchão e perto de superar o Inter, chegando a abrir 2 a 0, mas sendo superado nos pênaltis. Neste ano, escapou do rebaixamento na última rodada da fase de grupos, após conseguir três vitórias e um empate em quatro partidas.

O fardamento, inclusive, mantém o padrão daquele vestido pelo México. O caso da "Camisa Única", no entanto, jamais ganhou destaque na história do clube. Ficou no passado.

– Esse fato nunca teve destaque importante na história do Cruzeiro. Não foi muito público ou atingiu diretamente o torcedor do clube. Com o tempo acabou ganhando destaque por ser inusitado, até porque seria impossível uma seleção usar a camisa de um time nos dias atuais, pela estrutura que tem – completa Matzenbacher. 

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palcos demolidos

Arquibancada do antigo Estádio da Montanha é preservada no Cemitério João XXIII (Foto: Diego Guichard)Arquibancada do antigo Estádio da Montanha é preservada no Cemitério João XXIII (Foto: Diego Guichard)

Os palcos também não existem mais. O antigo Estádio da Montanha recebeu o último jogo em 8 de novembro de 1970, quando o clube venceu o Liverpool-URU por 2 a 0, em jogo que teve lágrimas de torcedores e comoção. A arena foi vendida para a construção do Cemitério Ecumênico João XXIII, que ainda preserva as antigas arquibancadas ao lado de centenas de jazigos – muitos de entes que viveram naquela época do Mundial. 

Em linha semelhante, o Eucaliptos também ficou para a história. Em agosto de 2010, o Inter vendeu o estádio para aplicar o montante na remodelação do Beira-Rio para a Copa de 2014. O local se tornou um condomínio residencial que, desde o fim do ano passado, ostenta um memorial para que os jogos do Colorado, como os da Copa de 1950, jamais sejam esquecidos. 

Estádio dos eucaliptos, arquibancada demolida (Foto: Diego Guichard/Globoesporte.com)Estádio dos Eucaliptos foi demolido em fevereiro de 2012 (Foto: Diego Guichard/Globoesporte.com)




Memorial Eucaliptos em praça localizada em complexo habitacional  (Foto: Diego Guichard)Memorial Eucaliptos em praça localizada em complexo habitacional (Foto: Diego Guichard)