Rio Bairros Barra da Tijuca

'Cidade de Deus — 10 anos depois' chega ao cinema

Documentário mostra o sucesso e o fracasso dos atores do longa de Fernando Meirelles

Leandro Firmino na Cidade de Deus, onde morava em 2002, quando o longa foi lançado: hoje ele está casado e vive com a mulher em São Gonçalo
Foto: Agência O Globo / Leo Martins
Leandro Firmino na Cidade de Deus, onde morava em 2002, quando o longa foi lançado: hoje ele está casado e vive com a mulher em São Gonçalo Foto: Agência O Globo / Leo Martins

RIO - Quando o filme “Cidade de Deus” estreou nos cinemas, no segundo semestre de 2002, um rapaz de 26 anos, dono de uma locadora de vídeos e praticante de judô, teve certeza do que queria para a sua vida. E, para conquistar isso, ele lutou muito. Após a entrada com a cara e a coragem no mundo das produções audiovisuais, três mudanças, dois casamentos e uma filha, Cavi Borges também contabiliza a direção de sete longas e 32 curtas.

O sonho, que começou quando viu retratada na telona a dura vida de meninos da favela, fecha um ciclo de gratidão com a realização do documentário “Cidade de Deus — 10 anos depois”, em parceria com Luciano Vidigal. O longa, que ficou pronto no fim de 2012, até agora só foi exibido em festivais. Com cinco prêmios nacionais e dois internacionais, a produção chega com moral às salas de cinema de nove estados do país, no próximo dia 5.

— O filme não nos deu grana, mas nos ajudou a abrir muitas portas. Já viajamos para Luxemburgo, Jerusalém, Nova York, Itália, Austrália e Madri, entre outros lugares, em mais de 60 festivais, e fomos premiados na Bolívia e no Uruguai. Agora, ele vai ser vendido pelo iTunes para 110 países. Para mim, é uma realização chegar às salas de cinema, ainda mais com um documentário, que é um tipo de produção que sofre muito preconceito. O bom é a curiosidade que desperta, porque todo mundo quer saber como anda a vida dos meninos do “Cidade de Deus". E muita gente, que acha que todos os atores estão bem e cheios de dinheiro, leva um soco no estômago quando vê a realidade em que os encontramos dez anos depois — conta Cavi.

O projeto do documentário nasceu em 2011, quando o diretor estava num festival de curtas, em Sergipe. Na época, ele namorava Sabrina Rosa, que integrou o elenco de “Cidade de Deus” e o acompanhava no evento. Paralelamente, uma repórter buscava atores que fizeram o filme para participar de uma reportagem ao estilo “por onde anda?". Depois de ajudá-la nessa busca, Cavi saiu de lá com uma grande ideia na cabeça.

— A jornalista me sugeriu fazer um documentário com a mesma pegada da matéria. Achei ótima a ideia e, quando voltei para o Rio, chamei o Lu (Luciano Vidigal) para embarcar nesse projeto comigo. Além de um ótimo parceiro, ele atuou no “Cidade de Deus”, o que facilitou a nosso contato com o (diretor do longa) Fernando Meirelles — lembra.


Cavi (à esquerda) e Luciano Vidigal já participaram de mais de 60 festivais com o documentário
Foto: Agência O Globo / Leo Martins
Cavi (à esquerda) e Luciano Vidigal já participaram de mais de 60 festivais com o documentário Foto: Agência O Globo / Leo Martins

Vidigal, por sua vez, fez apenas um pedido a Cavi. Ele queria que, no documentário, fossem retratados os dois lados da moeda; tudo o que pode acontecer a um ator após o sucesso repentino. Queria, com esse trabalho, mostrar a seus vizinhos que a fama não é o caminho para a felicidade:

— Pirei quando o Cavi me convidou para dirigir com ele. Mas sou nascido, criado e até hoje moro no Vidigal. Os meninos de lá podiam achar que era só participar de um filme como o “Cidade de Deus” para suas vidas mudarem da água para o vinho. Mas não é assim. Por isso, achei importante filmar também histórias de fracasso. Até por ter formação como ator, era um compromisso meu mostrar essa realidade no documentário.

O contato de Cavi e Vidigal com Fernando Meirelles foi mais fácil do que eles imaginavam. O diretor de “Cidade de Deus” não fez restrição alguma ao documentário da dupla. Pelo contrário, ajudou-os no que pôde, usando o vasto conhecimento que tem no mercado audiovisual.

— Ele não quis entrar como produtor, porque achou que seria estranho fazer parte da equipe de um documentário que iria falar sobre um filme que fez. Mas nos abriu muitas portas. Chegou a nos apresentar a uma funcionária da BBC de Londres, para tentarmos vender o filme para lá. Isso não chegou a rolar, mas já estávamos muito gratos pela tentativa. Depois, ele nos colocou em contato com várias pessoas que foram importantes nesse processo. Graças ao Fernando, economizamos cerca de R$ 60 mil, que pagaríamos pelos quase 11 minutos que usamos do “Cidade de Deus” no nosso documentário — diz Cavi.

Para Meirelles, que perdeu o contato com muitos atores do elenco de “Cidade de Deus”, a realização do documentário foi uma oportunidade de saber como anda a vida dos seus ex-colegas de trabalho. O diretor aprovou o resultado:

— O filme é muito bom. De certa forma, conta um pouco da História do Brasil durante esses dez anos, que nos foram vendidos como a década da prosperidade e da esperança. De perto, parece não ter sido bem assim. Nesse período, acompanhei algumas histórias tristes, como o assassinato de um garoto de que eu gostava muito (Jonas Michel, esfaqueado em 2006 pelo marido da amante), mas também tive ótimas notícias. O Cavi e o Luciano fizeram um trabalho emocionante e nem um pouco chapa branca. Eu tomo uns esculachos no filme e dou razão a quem me esculachou.

O documentário, que foi lançado há pouco mais de dois anos, em festivais, custou R$ 280 mil. Mas o valor só garantiu a produção. A exibição será possível graças a um prêmio da Ancine que ganhou no ano passado.

— O filme tinha um orçamento que ficava entre R$ 500 mil e R$ 800 mil. Tive que fazer campanha de crowdfunding e festa com os atores tocando para arrecadar grana para ajudar na realização. Fazer arte no Brasil não é fácil — diz Cavi.

FELIZES PARA SEMPRE

A vida de alguns meninos deu uma guinada, após a participação em “Cidade de Deus”. O ator Alexandre Rodrigues, que interpretou o fotógrafo amador Buscapé e, apesar de fazer teatro desde pequeno, nunca imaginou que um dia alcançaria o sucesso, é um dos casos bem-sucedidos, retratados no documentário de Cavi e Vidigal.

— Depois do filme, me vieram um milhão de possibilidades e escolhas. O Fernando (Meirelles) me convidou para ir a São Paulo aprender computação gráfica na O2, a produtora dele. Em seguida, fui chamado para fazer novela na Globo e não parei mais. Hoje, também trabalho com fotografia. Parece até uma grata coincidência, porque o Buscapé tinha aquela câmera furreca que ele não largava — lembra.

Fernando Meirelles Foto: Agência O Globo / Leo Martins
Fernando Meirelles Foto: Agência O Globo / Leo Martins

Atualmente, Rodrigues vive no Vidigal. Mas quando participou da seleção para o filme era morador do Cantagalo. Três meses antes dos testes, passeava com um amigo pela Lagoa despretensiosamente quando viu um cartaz de um curso de teatro.

— Foi no Colégio Estadual Ignácio Azevedo do Amaral. Deus me colocou ali naquele momento. Fizemos a inscrição para o curso com o Marcello Gonçalves, que depois nos avisou do teste para o “Cidade de Deus”. Fui com ele e o meu amigo, mas, no final das contas, só eu passei. Nem acreditei quando recebi o resultado — conta.

Num curta, filmado no Vidigal e dirigido por Babu Santana, Rodrigues conheceu a atriz Cacá Santini, responsável pelo figurino da produção. Depois de um ano de namoro, o casal foi morar junto e, recentemente, oficializou a união, em cerimônia que ele lamenta não ter sido presenciada por seu pai:

— Perdeu o maior “casamentão”, uma pena. Queria muito que ele tivesse compartilhando desse momento, que foi tão especial para mim.

A última vez em que esteve com o pai, no entanto, Rodrigues não esquece. Foi há 20 anos, num dia como outro qualquer.

— Ele saiu pela única porta que tinha na nossa casa e nunca mais voltou. Morávamos num cômodo, no Cantagalo, com minha mãe e minhas três irmãs, que nunca me abandonaram. Senti muita falta dele, mas minha mãe foi guerreira o suficiente para suprir qualquer coisa que faltasse nas nossas vidas — conta.

Com o dinheiro que conseguiu juntar, o rapaz realizou um sonho: comprar uma casa para a mãe. O imóvel fica no Vidigal:

— Ela trabalhava como servente e empregada doméstica. Nunca ia ter condições de comprar uma casa. Depois dessa, já comprei uma outra bem maior para ela, também no Vidigal. A primeira está alugada e ainda rende uma graninha.


Alexandre Rodrigues conheceu a mulher, Cacá Santini, durante as filmagens de um curta
Foto: Agência O Globo / Carlos Ivan
Alexandre Rodrigues conheceu a mulher, Cacá Santini, durante as filmagens de um curta Foto: Agência O Globo / Carlos Ivan

Assim como Rodrigues, o documentário “Cidade de Deus — 10 anos depois” mostra vários outros atores que se deram bem, como Roberta Rodrigues, Seu Jorge e Thiago Martins. As mudanças nas vidas deles enchem Fernando de Meirelles de orgulho:

— Tenho um carinho de pai ao ver alguns deles podendo mostrar a que vieram na TV, em filmes ou no palco. O Douglas Silva é um ator genial que resolveu ir para a música, mas ainda tenho a esperança de trazê-lo de volta para a interpretação. Leandro (Firmino) está fazendo a segunda temporada de uma série; a lista de quem acertou a mão não é pequena. O próprio Luciano Vidigal, diretor do documentário, participou do filme como assistente de direção e foi crescendo.

NEM TUDO SÃO FLORES

No outro lado da moeda estão os casos tristes, as pessoas para quem “Cidade de Deus” não serviu como um trampolim para a vitória. Entre essas histórias está a do ator Jonas Michel, morto aos 19 anos, citada por Fernando Meirelles. O ator participou do elenco de apoio do filme, como um bandido da turma de Zé Pequeno (Leandro Firmino). E a de Jefechander Suplino, que também trabalhava como cantor. Ele desapareceu em 2011 e jamais foi encontrado. No longa, Suplino fez o bandido Alicate, que fazia parte do Trio Ternura. Já Osmar, o MC Mazinho, outro integrante do elenco de apoio, morreu poucos meses antes do estreia do filme, num acidente de carro, quando voltava para casa, na Cidade de Deus, após sair de uma festa com amigos.

— Nesses anos que se sucederam ao lançamento do “Cidade de Deus”, aconteceu muita coisa ruim. Já começou com a morte do Osmar, que estava superansioso para o lançamento, mas se foi meses antes. Depois, veio o assassinato do Jonas Michel, que também deixou a gente bastante abalado e, há poucos anos, o desaparecimento do Jefechander, que, assim como o Osmar, ia direto comigo para o baile de Madureira — lamenta Leandro Firmino.

Outro caso que entristeceu os participantes da produção foi o rumo que tomou a vida de Rubens Sabino. O intérprete do personagem Neguinho foi destaque nos noticiários ao ser preso pelo roubo de R$ 26. Viciado em drogas, ele buscou ajuda numa clínica da prefeitura, mas deixou o local antes de iniciar o tratamento. A última informação que a equipe do filme de Cavi e Vidigal teve foi que, em maio deste ano, o rapaz abandonou uma cracolândia em São Paulo.

Essa histórias deixam o diretor Fernando Meirelles desapontado. No longo convívio com o elenco, desde o período de preparação até as filmagens, conta, ele desenvolveu uma relação paternal com a maioria dos meninos. Atores como Douglas Silva e Alexandre Rodrigues, que tiveram pouco ou nenhum contato com a figura de um pai.

— Foi quase um ano de um relacionamento cotidiano com aquela rapaziada e depois mais um tempo com alguns por causa da Cinema Nosso, a ONG criada a partir do filme. Saber dessas histórias me deixa profundamente triste — diz Meirelles.

A ONG nasceu como Nós do Cinema, um projeto criado por Meirelles e Kátia Lund, codiretora de “Cidade de Deus”, para apoiar o elenco. Após as filmagens do longa, em 2001, eles contaram com o apoio de Luis Lomenha, que teve uma pequena participação no longa, para transformar o local num espaço de formação popular no segmento audiovisual. Assim nasceu o Cinema Nosso.

— Deixamos de limitar o nosso foco à atuação e passamos a incluir cursos técnicos, não apenas de cinema, mas de games, televisão e animação, entre outros. Um grupo de atores do “Cidade de Deus” chegou a fazer alguns dos nossos cursos, e todos estão no mercado. Em 2007, fundamos a Jabuti Filmes, que já realizou mais de 300 produções. Atualmente, estamos em cinco cidades pelo país — conta Lomenha.


O ator Felipe Paulino trabalha como porteiro num hotel
Foto: Divulgação/Daniela Cantagalli / Divulgação/Daniela Cantagalli
O ator Felipe Paulino trabalha como porteiro num hotel Foto: Divulgação/Daniela Cantagalli / Divulgação/Daniela Cantagalli

Entre os que se afastaram do cinema, nem todos se ressentem disso. Um deles é Felipe Paulino, que também integrou o elenco de apoio do filme e abandonou a carreira de ator por problemas familiares. Após trabalhar como menor aprendiz num hotel e vendedor num quiosque, na praia, o rapaz voltou ao setor hoteleiro, e trabalha como porteiro.

— Entre os que fizeram “Cidade de Deus”, há os bem-sucedidos, os que se deslumbraram e os que continuam na batalha — diz Vidigal. — É o que o documentário mostra.