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A rubéola levou à legalização do aborto no Reino Unido. O zika fará o mesmo no Brasil?

A rubéola levou à legalização do aborto no Reino Unido. O zika fará o mesmo no Brasil?

A pesquisadora Ilana Löwy compara a epidemia atual ao surto de rubéola na Europa, que contribuiu para a legalização do aborto por lá, há quase meio século

HELENA FONSECA
03/02/2016 - 19h11 - Atualizado 03/02/2016 19h12

O surto de zika vírus e a sua possível relação com o aumento de casos de microcefalia têm levantado o debate sobre o aborto no Brasil. A interrupção da gravidez é permitida no país nos casos em que há risco para a mãe, a confirmação de anencefalia do bebê ou a mulher tenha sido vítima de estupro. Para a historiadora científica Ilana Löwy, pesquisadora do Cermes3, centro francês de pesquisa em medicina e saúde, o drama das mulheres grávidas infectadas pelo zika pode ter o mesmo impacto na legislação que teve a epidemia de rubéola, no Reino Unido e na França, entre as décadas de 1940 e 1960. Por lá, o aborto acabou legalizado. 

Ilana, nascida na Polônia, viveu em Israel dos 8 aos 21, quando foi para a França. Ela já realizou pesquisas no Brasil, onde publicou o livro Vírus, mosquitos e modernidade: a febre amarela no Brasil entre ciência e política (tradução de Irene Ernest Dias, Editora Fiocruz). O surto de zika no Brasil e os números de bebês com microcefalia são acompanhados de perto pela cientista, cujos estudos atuais são voltados para diagnósticos pré-natais e prevenção e tratamento de doenças relacionadas a mudanças no material genético do feto.

Em entrevista a ÉPOCA, Ilana defende que é a hora de o Brasil alterar suas leis sobre aborto. "É uma oportunidade. Espero que a epidemia de zika vírus no Brasil abra espaço para se debater o direito de decisão da mulher de ter ou não o bebê", diz.

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ÉPOCA – Em janeiro, a senhora publicou um artigo no qual comparava a atual epidemia de zika vírus no Brasil à de rubéola no Reino Unido, no século passado, em relação à discussão sobre o aborto. Como o debate sobre a interrupção da gravidez ocorreu naquela ocasião?
Ilana Löwy – 
Nas décadas de 1940, 1950 e 1960, o Reino Unido sofreu com um surto de rubéola. Descobriu-se que uma gestante que fosse infectada com o vírus no primeiro trimestre de gravidez teria um grande risco de dar à luz uma criança com sequelas irreversíveis, como cegueira, surdez e mesmo a combinação dos dois, além da própria microcefalia. Mesmo sem a certeza de que o vírus atingiria o feto, nem a magnitude dos problemas que podiam ser causados, mulheres infectadas pelo vírus da rubéola recorriam ao aborto, ainda ilegal no Reino Unido. Médicos britânicos que acreditavam que a mulher devia decidir o futuro de sua gestação, ou seja, de sua própria vida, praticavam aborto em gestantes infectadas. Esses profissionais arriscavam sua carreira e sua liberdade – podiam ser presos pela prática. As mulheres infectadas procuravam o aborto precocemente, ainda no início da gestação.

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ÉPOCA – A epidemia de rubéola impulsionou a legalização do aborto no Reino Unido?
Ilana – 
Em 1959, começou um debate interessante no Reino Unido acerca da rubéola. Não eram todos os médicos que concordavam com o aborto nesta situação. Muitos acreditavam que o risco causado pela rubéola não justificava a prática. Por causa da diversidade de opiniões é que o debate foi tão importante. Alguns anos depois do surto, em 1967, o aborto durante as primeiras 24 semanas de gestação foi legalizado no Reino Unido (com exceção da Irlanda do Norte). Não tenho dúvidas de que o surto de rubéola e suas consequências tiveram papel fundamental de influenciar o debate e levar à decisão.

A historiadora científica polonesa, Ilana Löwy (Foto: Arquivo pessoal)

ÉPOCA – Além do meio médico, como a discussão foi feita em toda a sociedade?
Ilana – 
Havia preconceito contra as mulheres que praticavam o aborto naquela época. Elas eram vistas como promíscuas, imorais e até adúlteras. Com o debate, descobriu-se que isso não era verdade. Mulheres que praticavam aborto eram respeitáveis, muitas vezes casadas. Elas apenas não queriam correr o risco de gerar um bebê com futuros problemas em seu desenvolvimento psicológico ou motor.

ÉPOCA – O surto de zika vírus e sua provável relação com o aumento de casos de microcefalia podem influenciar, como ocorreu com a rubéola na Europa, mudanças na legislação sobre o aborto no Brasil?
Ilana – 
É uma oportunidade. Espero de verdade que a epidemia de zika vírus no Brasil abra espaço para se debater o direito de decisão da mulher de ter ou não o bebê, como aconteceu com a epidemia de rubéola no Reino Unido. Historicamente, foi muito importante persuadir os médicos. Se eles chegarem a um consenso de que o aborto é um direito da mulher, eles têm meios de pressionar o governo.

ÉPOCA – O aborto de bebês com microcefalia deveria ser incluído na mesma legislação do aborto de anencéfalos, permitido no Brasil?
Ilana – 
Na minha opinião, não seria uma solução. Porque aí a microcefalia estaria enquadrada nos casos de “aborto de risco”, como se fosse possível diagnosticá-lo e somente este risco justificaria o aborto. Mas sabemos que não há como saber o quão afetado o bebê será. Eu acho que é a mulher que deve decidir. Minha opinião é de que todo aborto é aborto de risco. A mulher é a única que pode definir o que é risco para si. Talvez o governo brasileiro devesse fazer como foi feito no Reino Unido na década de 1960. O governo passou a olhar o aborto por outro ponto de vista, não punindo os médicos que o praticavam ilegalmente, mas providenciando a prática legal do aborto para mulheres pobres nos hospitais públicos. O importante é legalizar, isso pode ser muito difícil, mas é necessário chegar à conclusão de que é a mulher que pode decidir o que fazer ou não.

ÉPOCA – A senhora conhece o Brasil, já realizou pesquisas aqui. Vê a discussão do aborto ainda como um tabu no país?
Ilana – 
Eu sinceramente não sei por que a questão do aborto não é colocada em debate público no Brasil. Acredito que essa postura social perante o aborto se deva, em parte, por causa da religião, mas acho que também ocorra por motivos históricos e inclusive políticos. O acesso público aos contraceptivos não pode anular a necessidade de discussão do tema, afinal sabemos que contraceptivos não são perfeitos, não há como serem.

ÉPOCA – Acredita que o debate, agora com os casos de microcefalia, levará à legalização do aborto?
Ilana – 
Há duas soluções: uma é legalizar o aborto; a outra é fazer o que se faz na Suíça e em outros países, onde, apesar de não ser legal, a prática é tolerada – ou seja, há diretrizes dos ministérios de saúde para não processar médicos por isso. Talvez possa acontecer isso no Brasil. Já seria um avanço.

ÉPOCA – Legalizar o aborto por conta da infecção pelo vírus, sem confirmação dos danos ao bebê, não pode levar ao fim de muitas gestações de crianças que teriam chances de sobreviver e de maneira saudável?
Ilana – 
No Brasil, como o aborto é ilegal, as mulheres não podem perder tempo, precisam correr para fazer o mais rápido possível, é uma urgência. Eu moro na França e aqui o aborto é legalizado. Assim, as mulheres podem esperar, passar por um acompanhamento quando tomam essa decisão, são aconselhadas e podem ver se o bebê vai ser afetado ou não. Mas no Brasil não há essa possibilidade porque tudo tem que ser feito rapidamente, mesmo sem saber, já que a prática é ilegal. Há muito mais chances de bebês saudáveis terem morrido no Brasil atualmente do que aqui na França. 

ÉPOCA – A legalização do aborto trará custos para o sistema de saúde?
Ilana – 
O aborto ilegal sai mais caro para o sistema de saúde do que legalizá-lo. Os remédios e a internação das mulheres após um aborto ilegal saem muito mais caros do que legalizar a prática e promover vias legais de garanti-la para as mulheres. No Brasil, o aborto é causa de hospitalização de mulheres porque é ilegal. Aqui na Europa, as mulheres não são internadas por esse motivo. Por ser legalizado e seguro, elas são medicadas e ficam apenas por algumas horas no hospital.

ÉPOCA – A legalização do aborto pode reduzir os cuidados contraceptivos e aumentar casos de gravidez não planejada?
Ilana –
 É difícil persuadir uma mulher que decide pelo aborto. Ela vai encontrar uma forma de fazê-lo. Pensando pela ótica religiosa, uma mulher que pratica o aborto legal pode estar cometendo um pecado: impedir o nascimento do bebê; mas uma mulher que pratica o aborto ilegal estará cometendo dois pecados: contra o bebê e contra si mesma, porque ela vai se ferir. A situação de ilegalidade da prática do aborto no Brasil afeta todas as mulheres, pobres ou ricas, independente de suas condições. Praticar um aborto tardio é ainda mais difícil.

ÉPOCA – A senhora estudou a febre amarela urbana, também transmitida pelo Aedes aegypti. É possível eliminar esse vetor, que transmite ainda dengue e zika vírus?
Ilana –
É uma meta importante, mas muito difícil de ser atingida rapidamente. Minha crença de que será difícil eliminar os mosquitos está baseada na observação da dificuldade de eliminar a epidemia de dengue.

Com edição de Liuca Yonaha








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