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Bia Zaneratto: A história da artilheira de meninas e meninos

Bia Zaneratto: A história da artilheira de meninas e meninos

Bia jogava com os meninos da escola, enfrentou preconceito, tentou o vôlei – e hoje é a estrela revelação de um esporte que praticamente não existe no Brasil

RODRIGO CAPELO
13/08/2016 - 10h39 - Atualizado 16/08/2016 16h01
Bia Zaneratto jogadora de futebol da seleção brasileira (Foto:  Gonzalo Fuentes / Reuters)

Como um zumbi que se materializa em filme de terror, a atacante brasileira Beatriz Zaneratto apareceu de surpresa entre zagueira e goleira suecas e empurrou a bola para as redes. Começava ali o pesadelo do forte time da Suécia, um time tão forte que eliminou as favoritas americanas da Olimpíada – e que sairia de campo derrotado por 5 a 1. O jogaço marcou o surgimento de um novo ídolo do esporte brasileiro. Bia, de 22 anos, é a menina prodígio de um time de veteranas como Marta, cinco vezes Bola de Ouro da Fifa, e Cristiane, maior artilheira dos Jogos Olímpicos. Melhor em campo, Bia demoliu a defesa sueca com picardia, garra e inteligência. Antes, usara as três qualidades contra um adversário ainda mais forte: o preconceito contra o futebol feminino, que teima em persistir no país do futebol – e que faz com que tal esporte, com público crescente no mundo inteiro, praticamente inexista no Brasil. 

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Bia nasceu em uma família de classe média em Araraquara, interior de São Paulo – cidade famosa não pelo futebol, mas pela cultura: lá nasceu o diretor José Celso Martinez Corrêa, e lá o filósofo Jean-Paul Sartre deu uma palestra famosa nos anos 1960. Quando tinha 7 anos, seu pai, Aparecido Donizete João, foi intimado a ir até a escola Antonio Lourenço Correa. A diretora queria autorização para que Bia jogasse uma competição interescolar. Ela seria a única menina do campeonato e sua presença era considerada imprescindível. Bia jogava futebol com os meninos na hora do recreio, e seu time ganhava sempre. Aparecido tinha medo de que a filha se machucasse, e deu uma orientação à menina franzina. “Eu disse para ela: ‘Filha, fica na sobra, deixe os garotos quebrarem a canela. Você pega a bola e vai para o gol’.” Inteligência e picardia. Aos 7 anos, Bia foi artilheira e campeã.

Não havia time feminino em Araraquara, e Bia continuou jogando com os meninos. Aos 13 anos, treinava na ONG Espaço Criança, criada por Luiz Carlos da Silva, amigo de Aparecido. Ele foi o primeiro treinador da vida de Bia e presenciou o primeiro sucesso – e o primeiro trauma – da atleta. Parentes dos meninos que jogavam no time da ONG fizeram uma rifa para levar o time a uma competição em Itapetininga, cidade vizinha. O time do Espaço Criança foi vice-campeão. Bia, com quase 13 anos, virou notícia em televisões e jornais locais. O destaque despertou o preconceito. “Algumas pessoas olhavam para ela e nos diziam: ‘Ela joga futebol, é? Será que é sapatão?’”, diz Aparecido. “A mãe dela e eu nunca nos preocupamos. Mesmo se ela fosse homossexual, não deixaria de ser amada. Não se pode sufocar um talento por causa de uma hipocrisia da sociedade.” A adolescente Bia, no entanto, não lidou bem com as fofocas. Desistiu do futebol.

Bia Zaneratto no jogo contra a Suècia (Foto:  Gonzalo Fuentes / Reuters)
Bia Zaneratto no time Sereias da Vila,de Santos,em 2010 (Foto:  Arquivo Pessoal)

Bia tentou o futebol de salão, mas não gostou. Foi jogar vôlei no Clube 22 de Agosto. Meses depois, o então prefeito de Araraquara, Edinho Silva (PT), montou um time feminino para a Ferroviária, clube de camisa fúcsia com alguma tradição no futebol paulista. Edinho já tinha visto Bia jogar. O técnico Paulinho Taiúva foi até a casa de Aparecido para convencer Bia a se juntar ao time. Ela não quis. Trocara o futebol pelo vôlei. Alguns meses se passaram e Edinho insistiu. Ligou ele mesmo para Aparecido e disse que precisava da menina no time feminino. “Eu falei: ‘Prefeito, se não for muito ousado da minha parte, vou pedir para ligar em casa e conversar com ela. Ela vai ficar lisonjeada se o prefeito pedir para ela jogar’”, diz Aparecido. Edinho – que anos depois seria ministro da Secretaria das Comunicações de Dilma Rousseff – ligou, pediu e conseguiu.

Pela primeira vez, aos 13 anos, Bia era uma menina entre meninas. Era a mais nova do time e já se impunha. “Ela fazia a gente dar risada, era nossa mascotinha, mas dentro de campo era muito séria, brava, dava até medo”, diz Bruna de Almeida, goleira que até hoje defende a equipe fúcsia. A antiga companheira se lembra de um jogo da Ferroviária contra o Botucatu em que, mesmo com 3 a 0 no placar, Beatriz saiu de campo irritada porque perdera um pênalti. “Ela ficou chateada porque errou. Ela nunca aceitou errar”, diz Bruna. Além de picardia e inteligência, a menina tinha garra – e não gostava de perder.

Bia, ainda com 13 anos, foi convocada para a seleção Sub-17. A ascensão foi rápida. Aos 17 anos, Bia recebeu uma chance na equipe principal, onde figuravam as lendárias Marta e Cristiane, convocada pelo técnio Kleiton Lima. Corria o ano de 2010, e Kleiton era também técnico das Sereias da Vila, time de futebol feminino ligado ao Santos Futebol Clube. Kleiton levou Bia para jogar lá. “Não tem no Brasil uma jogadora com força e explosão e também refinamento técnico como a Bia”, diz Kleiton.

Na ruína que são os campeonatos de futebol feminino no Brasil, as Sereias ganharam o Paulista e a Copa do Brasil com facilidade – e também um torneio importante, a Libertadores da América. O supertime tornou-se a base para a seleção feminina e teve 11 atletas convocadas de uma só vez. Não era, no entanto, um projeto sustentável. Bia foi obrigada a jogar em times muito aquém de seu talento, como o Bangu, do Rio de Janeiro, e o Vitória das Tabocas, em Santo Antão, interior de Pernambuco. Foi salva pelos coreanos. Em 2013, apareceu a oportunidade de jogar no Hyundai Steel Red Angels. Bia foi e conquistou um tricampeonato nacional na Coreia do Sul. No time que disputou a Copa do Mundo de 2015, Bia e Marta, que jogava na Suécia, eram as únicas brasileiras a atuar no exterior. Todas as outras atletas que hoje compõem o grupo olímpico treinavam na seleção permanente da CBF, bancada com o dinheiro da confederação sob a batuta de Oswaldo Alvarez, o Vadão. Fora do Brasil, no entanto, o futebol feminino está em ascensão. Equipes de ponta da Europa, como o Barcelona (onde joga Andressa) e o Paris Saint-Germain (onde joga Cristiane), formaram bons times femininos. As demais craques do Brasil jogam nos Estados Unidos, na China, na França e na Dinamarca.

O Campeonato Brasileiro de futebol feminino é uma aberração. Tem 20 equipes, mas elimina 12 após quatro jogos. Isso barra o desenvolvimento. As estrangeiras jogam 14 partidas na temporada chinesa e 26 na coreana. Mais jogos levam a mais qualidade. O público no Brasil raramente passa de 1.000 pagantes. O primeiro torneio feminino de base surgiu no país só em 2016 com recursos do Ministério do Esporte. A seleção permanente serviu ao propósito de entrosar um time para a Olimpíada, mas exclui as jogadoras das competições. É um quadro que compromete a peneira e a preparação de novas atletas. Com suas boas atuações na Olimpíada, as jogadoras brasileiras não brigam apenas por medalha, mas para superar o preconceito e tornar seu esporte viável no país. Bia, jogadora símbolo desta geração, pode ter um papel fundamental. Que não lhe faltem picardia, inteligência – e muita garra.

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