Alguns literatos de mente estreita já esperneiam, mas o Nobel dado essa manhã a Bob Dylan é certeiro. Muito além da discussão se letra de música é poesia, o conjunto da obra desse cantor, compositor (e ator, cineasta, pintor, escultor, escritor...)  merece a honraria.
Até sua entrada no mundo pop, as letras de canções podiam ser resumidas ao que no mundo anglo-saxão é catalogado como “boy meets girl”. Ou “tolas canções de amor”, como tão bem sintetizou em auto-ironia Paul McCartney, este um dos muitos contemporâneos diretamente influenciado pela poesia de Dylan. Nela, além das metáforas biblícas usadas como armas, foram incorporadas referências  de Rimbaud, Joyce, Brecht, Kafka, Camus, Ginsberg, o cinema de Fellini e o que mais parasse nas mãos de um sujeito ávido por conhecimento.
Essa receita aplicada às suas canções não só mexeu com a cabeça de músicos como de escritores, cineastas, dramaturgos e pensadores mundo a fora.

Em 1965, aos 24 anos, já precocemente saudado como gênio da música folk de protesto, Dylan também enfureceu fãs, colegas e estudiosos do gênero ao incorporar guitarras elétricas e demais elementos do rock (que renascera na Inglaterra) a seu cardápio. Dois álbuns lançados naquele ano com poucos meses de espaço entre eles, março e agosto, respectivamente, “Bringing it all back home” e “Highway 61 Revisited”, e um show, em 25 de julho, no Newport Folk Festival, foram os sinais de que os tempos tinham mudado mesmo. Essa estreia elétrica e, poeticamente, “surrealista/psicodélica” foi rejeitada por boa parte da plateia, assim como na turnê britânica que prosseguiu pelo ano de 1966. Período fascinante, fundamental para a cultura do século XX e que reverbera até hoje. Por sinal, não fossem suficientes os discos - incluindo álbum duplo “Blonde on blonde”, em 1966 - e filmes como o documentário “No direction home” (dirigido em 2005 por Martin Scorsese) e o de ficção “I’m not there” (dirigido em 2007 por Todd Haynes e com oito atores se alternando no personagem inspirado no artista, incluindo Cate Blanchett para a delirante fase de 1966), acaba de ser lançada uma caixa de 36 CDs, “The 1966 live recordings”, com tudo que foi gravado naquele ano em turnê que passou por EUA, Grã-Bretanha, Europa e Austrália.
O rompimento de expectativas têm sido uma constância. Em 1967, Dylan usou de um acidente de moto para se afastar das turnês, da indústria do disco, do público. E, sem deixar de criar, voltar novamente transformado, em disco mergulhado no universo da música country, "John Wesley Harding". Desde então, foram muitas mudanças, artísticas e pessoais. Nascido e criado no judaísmo, agnóstico durante boa parte dos anos 1960, converteu-se ao protestantismo em meados da década seguinte, para, já no século XXI, afirmar que não acredita em religião organizada alguma.

Musicalmente, desde 1997, quando, aos 56 anos, lançou “Time of of mind”, Dylan voltou a esbanjar  fôlego criativo. Além dos muitos álbuns e caixas com material reciclado (ao vivo, sobras de estúdio), tem lançado regularmente material inédito de qualidade, em títulos como “Love and theft” (2001), “Modern times” (2006), “Together through life” (2009 ) e “Tempest” (2012).  Em outra surpresa, seus dois últimos discos de estúdio trazem apenas standards cantados por Frank Sinatra, “Shadows in the night” (2015) e “Fallen angels” (2016).

Notável também pelo fato de que, desde 1988, Dylan vive praticamente na estrada ao redor do mundo, fazendo jus ao título de sua Never Ending Tour  (Turnê Sem Fim). O Brasil tem estado sempre na rota e foi inspiração para outra das veias artísticas de Robert Allen Zimmerman, rendendo, em 2010 a exposição de pinturas e livro “The Brazil series".