Rio

Jornalista mantém portal sobre África com recursos próprios há três anos

Site de Natália da Luz conta com cerca de cem mil acessos por mês
Missão. A jornalista Natalia da Luz, na Pedra do Sal: reportagens em países da África Foto: Paulo Nicolella / Paulo Nicolella
Missão. A jornalista Natalia da Luz, na Pedra do Sal: reportagens em países da África Foto: Paulo Nicolella / Paulo Nicolella

RIO — A jornalista Natalia da Luz chega à Pedra do Sal, na Saúde, com o seu sorriso largo e vestindo uma blusa feita em Ruanda. Era o começo de uma tarde quente e ensolarada, e, apesar de toda simpatia, ela reclama do cansaço. Natalia havia dedicado a manhã a entrevistar paratletas africanos na Vila Olímpica, na Barra. Naquele dia, ouviu e gravou com a sua inseparável Canon, que parece até uma extensão do seu corpo, seja numa expedição em Angola, seja numa viagem à pouco conhecida Suazilândia, a história de pessoas com deficiência que estavam no Rio representando Cabo Verde, Costa do Marfim e Quênia nos Jogos Paralímpicos. E, com aquela animação de um repórter que acaba de descobrir uma grande história, conta que ainda se encontraria com um atleta cadeirante de Serra Leoa, jogador de tênis de mesa, que foi morador de rua em seus país e cujo talento foi revelado em partidas de pingue-pongue.

No meio da conversa aos pés da Pedra do Sal, ela revela que a blusa afro que veste foi um presente da ativista Monique Mujawamariya, de Ruanda, que tentou denunciar ao mundo, no começo dos anos 90, que havia um grande risco de os conflitos em seu país culminarem em genocídio. O temor de Monique virou um pesadelo real, em que ela própria quase foi assassinada. Admiradora da ativista, Natalia a encontrou mais de uma década depois na Cidade do Cabo, na África do Sul. As duas se tornaram amigas, e o resultado desse papo pode ser lido no “Por dentro da África”, um portal mantido pela jornalista, de 32 anos, com recursos próprios, há três anos.

No site, ela fala, principalmente, de ativismo, política, igualdade de gênero e cultura. Na verdade, ela deixa falar. A sua filosofia é dar voz às pessoas por meio do portal, que conta com cem mil acessos por mês e mais de 500 mil seguidores no Facebook. Há reportagens construídas com ajuda das redes sociais e do Skype, mas também muito material feito in loco, incluindo vídeos. Niteroiense e hoje moradora da Barra, Natalia já pisou em países improváveis para a grande maioria, como Togo, Quênia, Líbia e Gana. Em Gana e no Togo, teve contato com descendentes de pessoas que foram escravizadas no Brasil e retornaram à África.

ELA MOSTRA UMA FOTO NO TOGO AO LADO DE UMA MULHER

— Imagina a minha emoção ao ver essa senhora cantando em português uma burrinha (derivação do bumba meu boi)? Ela não fala português, mas era a língua dos retornados quando voltaram para o Togo depois de 1835. Eles levaram um pouco da nossa cultura. Até hoje tem carnaval no Benin com vestimentas e músicas em português — diz Natalia.

Aos 23 anos, ela fez sua primeira viagem de avião e também para o exterior. O destino não era Europa, Estados Unidos ou Argentina, mas a África do Sul. O período de estágio numa TV tinha terminado e Natalia queria escrever de lá para veículos brasileiros. Era 2007, e o país se preparava para sediar, em 2010, a Copa do Mundo.

Na Cidade do Cabo, com pouco dinheiro — ela fizera um empréstimo para viajar —, morava numa acomodação estudantil e fazia uma refeição por dia. Conquistou muitos amigos nesse período de quase três meses e tomou uma decisão: a África passaria a ser sua “missão”. Viveu na África do Sul por mais duas temporadas a trabalho. Cobriu a Copa do Mundo, a Copa das Confederações e a eleição presidencial.

Nesse meio tempo, ampliou horizontes e fronteiras. Esteve na Suazilândia em 2009 para escrever sobre a epidemia de HIV no país. Outra experiência marcante foi no Quênia, onde encontrou ativistas que lutam pelo fim da violência contra a mulher e a circuncisão feminina.

— O questionamento lá em relação à circuncisão é muito forte. Me convidaram para ver um ritual de circuncisão numa criança de 5 anos. Foi uma mistura de sentimentos. Eu chorava, enquanto para elas era natural. Depois, as mulheres me abraçaram — conta ela. — Não julgo, faz parte da cultura. A questão é de saúde. As crianças não escolhem, e muitas mulheres têm problemas por causa disso a vida toda, sem contar as mortes.

Entre outras viagens, a jornalista esteve na Líbia duas vezes: para conhecer o paradesporto, uma saída que era vista no país pós-Kadafi para os mais de 15 mil mutilados durante a guerra, e para o primeiro Jogo da Paz depois da queda do ditador. Em Angola, fez uma expedição a Mbanza-Kongo, capital do antigo Reino do Kongo, de onde veio a maioria dos africanos escravizados no Brasil. Em Gana, em outubro do ano passado, ganhou o prêmio Africa Peace Awards Media Achievement, consequência de uma série de reportagens de cunho cultural e social.

Marido de Natalia, o professor de música Heitor Castro decifra a paixão pela África, a princípio inexplicável:

— Ela é atraída pelo contexto social. Se não fosse essa experiência na África, de qualquer forma ela ia trabalhar ajudando as pessoas e com um jornalismo focado em minorias. Mas ela tenta mostrar um contraponto, que a África não é só pobreza e guerra.

No portal, Natalia conta com colaboradores, incluindo ex-presos políticos de Angola. O poeta moçambicano Morgado Mbalate é um dos que têm seus textos publicados no “Por dentro da África”. Ele traduz o que Natalia chama de “missão” com uma citação de outro poeta e escritor moçambicano, Mia Couto: “Vivemos em geografias diferentes, mas estamos sentados na mesma varanda”.

— O trabalho da Natalia é uma ponte que leva a cultura dos povos africanos para o Brasil e o mundo. Me maravilha a forma como ele cresceu e hoje revela africanidades que alguns africanos desconhecem — diz Morgado, direto da cidade de Matola, em Moçambique.

CONTRA ESTERÓTIPOS

O site tem ainda reportagens sobre ciência e inovação, além de crônicas e contos. Em dezembro, ela quer rodar pela Tanzânia, Uganda, Burundi e Ruanda, país da amiga Monique.

— A África tem 54 países, não dá para generalizar. A média de crescimento da África Subsaariana é de 5,5% ao ano. Existe um movimento econômico grande. Nós temos que nos acostumar a ter outro olhar para a África, parar com o coitadismo — reforça Natalia.

A fonte de renda da jovem vem de um contrato com as Nações Unidas como assistente de informação pública, produzindo vídeos para agências da ONU, como os que tem feito agora com refugiados no Rio. A jornalista prepara uma plataforma no seu portal em que eles poderão contar sua história. A ideia é fazer algo de concreto para ajudá-los a se manter, com as próprias pernas, na nova terra.