Coluna
Ana Paula Lisboa
A escritora e ativista Ana Paula Lisboa Foto: Ana Branco / Agência O Globo

Somos mais que ovelhas

É realmente impressionante e irritante como nossos diretos são instáveis

Eu vivi muitos anos dentro da Igreja Evangélica, e não pense que eu era uma “crente de banco”, que entrava e saía despercebida. Pelo contrário, fui ativa no movimento da juventude, fui dos grupos de oração, das equipes de dança e evangelização e também do grupo que passava as madrugadas orando por pessoas em situação de rua e entregando pão com mortadela para elas. Virei muitas noites da última sexta-feira do mês nas vigílias da Assembleia de Deus em Madureira, numa época em que o Marcos Feliciano era só pastor, mas já se comparava a Jesus.

O que me diferenciava dos outros “irmãos” era o fato de eu haver sido criada na Umbanda. Frequentei festas de santo desde muito novinha, batia palmas, cantava os pontos, comia as comidas e admirava as ekedis .

Crescer próxima das religiões de matriz africana me fazia ter noção de que, ao contrário do que eu ouvia sentada no banco, tudo aquilo que eu havia vivido não era do diabo, orixá não era demônio disfarçado. As festas de Cosme e Damião eram, e ainda são, umas das comemorações mais importantes para a minha família, mais importantes até do que o Natal.

Outro ponto que me diferenciava era a minha vivência com a cultura popular: o jongo, o coco, o samba de roda. Não era possível que isso fosse pecado.

Vivi muitos anos assim, “crente Raimundo: um pé na igreja e um pé no mundo”. Tendo amigos de diferentes denominações, desde as igrejas mais tradicionais, como a Deus é Amor, até as mais abertas, como a Igreja Contemporânea. Era comum nas nossas conversas temas como “qual o papel da Igreja na sociedade?”, e foi também a partir desses questionamentos, e logicamente também pelo desejo desenfreado de poder, que muitas igrejas evangélicas passaram a interferir diretamente na política, com seus próprios candidatos, com sua própria bancada.

Ajudou bastante também o fato de que boa parte da esquerda considerava os crentes burros, bitolados, alienados. Não entendiam, e ainda não entendem, o voto por proximidade e também o papel que a Igreja exerce especialmente nos territórios mais pobres. Esses espaços são muitas vezes a única rede para fora do tráfico, das drogas, da violência doméstica.

Talvez por causa dessa história toda, mesmo eu já entendendo há anos que Deus está para muito além das paredes e que ele se manifesta de várias formas, quando surgiram as primeiras falas do tipo “não quero um prefeito bispo”, bateu um certo rancor. Eu achei o argumento tão raso, parecido com “um evangélico é burro e não é capaz de governar”. Pensei nos meus amigos que são da Igreja Universal, pessoas abertas, seres pensantes e questionadores, tem até feminista. Não poderia ser tão ruim...

Mas é!

Para começar, o programa de governo do candidato traz como únicas propostas para a cultura: manter o apoio às escolas de samba e aos blocos de carnaval e a ampliação do Vale-Cultura, o que pelo visto nem pode ser feito, dado que é um programa do governo federal.

O candidato bispo se orgulha de ter sido missionário durante anos, mas acha que a África é um país.

Diz que não mistura política e religião, mas deixou claro no último debate que, para ele, a única definição possível de família é a que tem o “paizinho e a mãezinha”.

Isso é grave porque vimos muito bem o que aconteceu quando o pastor Ezequiel Teixeira assumiu em janeiro a Secretaria Estadual de Assistência Social e Direitos Humanos dizendo acreditar na cura gay e fechou quatro centros de assistência à população LGBT. Graças a Deus o pastor foi exonerado do cargo.

É realmente impressionante e irritante como os nossos direitos são instáveis. Num piscar de olhos, lutas de décadas vão pelo ralo.

Mas, voltando ao programa de governo, para não ser Judas, a palavra gênero é citada uma vez em toda a proposta. Ela aparece quando o candidato declara que não haverá discriminação na gestão técnica e profissional da máquina pública. Que alívio...

A palavra mulher aparece também uma única vez, dentro das questões que tratam de saúde, e a proposta é garantir que toda mulher grávida saiba em qual maternidade será seu parto com pelo menos cinco meses de antecedência. Puxa, essa é realmente a única forma em que uma mulher pode existir na cidade: mãe.

Por falar em mãe, hoje é o dia de luta pela descriminalização do aborto na América Latina, e essa pauta parece coisa de outra dimensão na atual conjuntura. Com a desculpa do “ide e pregai a palavra”, homens impõem as suas palavras e os seus pensamentos, num Estado que deveria ser laico, mas não é, e sempre pode piorar.

O candidato apostou no slogan “é hora de cuidar das pessoas”. Ele se comporta exatamente como um pastor, que precisa cuidar de suas ovelhas, que vai atrás daquela que se desgarrou e faz as outras esperarem. Talvez por isso ele declare que não fará qualquer obra, não construirá qualquer escola ou hospital até os outros estarem funcionando perfeitamente. As outras ovelhas que esperem!

É preciso mais que um bom pastor para governar o Rio, é preciso visão de cidade, garantia e ampliação de direitos para todos e todas, é preciso mais que cimento social e boas ações. Somos muito mais que ovelhas.

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