Rio

Segurança pública: UPPs mudam conceito de policiamento nas comunidades

Atualmente são 37 UPPs no Rio e uma em Duque de Caxias, na Baixada Fluminense

Recrutas Unidade de Polícia Pacificadora - do Morro Dona Marta, em Botafogo, observam a favela
Foto: Agência O Globo / André Teixeira / 19.12.2008
Recrutas Unidade de Polícia Pacificadora - do Morro Dona Marta, em Botafogo, observam a favela Foto: Agência O Globo / André Teixeira / 19.12.2008

RIO - A notícia surgiu nas páginas do GLOBO no dia 12 de novembro de 2008: “PM ocupa Cidade de Deus e 7.700 ficam sem aulas”. Oito dias depois, uma ação semelhante aconteceria em Botafogo: “Polícia ocupa o Morro Dona Marta”. Ainda sem nome, começavam a nascer as Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs).

As reportagens já informavam sobre a intenção policial de permanecer por “tempo indeterminado”. As décadas de abandono e o extenso domínio do poder paralelo, no entanto, deixavam dúvidas: seria possível transformar a vontade em realidade? Quase sete anos depois, em uma história contada em detalhes pelo GLOBO, são 37 UPPs no Rio e uma em Duque de Caxias, na Baixada Fluminense.

— Dentro da lógica de retomada do território, a UPP surgiu para atender uma demanda da comunidade impedida de usar uma creche pública por criminosos (no Dona Marta) — lembra o secretário estadual de Segurança, José Mariano Beltrame. — Quase uma década depois, o projeto salvou quase mil vidas, ao diminuir em 65% os homicídios dolosos nestas áreas e em 85,5% as mortes decorrentes de ações policiais nas comunidades.

A polícia chegou antes à Cidade de Deus, mas a primeira unidade foi instalada no Morro Dona Marta. A narrativa de uma favela sem o domínio de bandidos foi explorada, com a desconfiança necessária a qualquer bom trabalho jornalístico: “Uma favela sem tráfico. Até quando?”, interrogava uma chamada na primeira página de 2 de dezembro de 2008. A reportagem, a principal da Editoria Rio naquela edição, destacava que os traficantes não eram mais vistos circulando na favela em Botafogo e que todas as bocas-de-fumo haviam sido fechadas. A modalidade ainda não fora batizada como a conhecemos hoje. No dia 19 de dezembro, foi inaugurada a primeira UPP, que, na ocasião, foi chamada de Posto de Policiamento Comunitário (PPC). Como revelado pelo GLOBO, 125 policiais recém-formados seriam os responsáveis pela manutenção da segurança na área.

Durante uma semana, o repórter Antônio Werneck e o fotógrafo Gustavo Stephan foram diariamente ao Dona Marta. Circularam pelas vielas, conversaram com muitos moradores e, no dia 23, véspera das comemorações natalinas, dormiram na mesma creche onde, um mês antes, traficantes estavam escondidos e receberam a tiros os policiais que iniciaram o processo de ocupação. A tensão ainda pairava no ar, mas o som dos fuzis não interrompia mais o sono de ninguém.

— Depois da morte do (jornalista) Tim Lopes (assassinado por traficantes na Vila Cruzeiro, em 2002), parei de entrar em favela. Mas a retomada do Dona Marta pelo estado permitiu essa experiência. No início, a dos moradores ainda estavam muito desconfiados e não queriam falar. Mas fui ganhando a confiança deles ao longo da semana — lembra Werneck. — Já havia um burburinho sobre a possibilidade de a polícia ocupar o morro, mas esse modelo permanente foi uma surpresa.

Enquanto isso, na Cidade de Deus, um território bem maior que o da favela de Botafogo, o trabalho policial avançava a passos mais lentos. No dia 22 de dezembro de 2008, a manchete dizia: “Polícia ataca finanças do tráfico na Cidade de Deus”. A reportagem mostrava que a ação da PM buscava reprimir as fontes ilegais de receita, como a venda de gás e de sinal de TV a cabo, e sufocar o poder paralelo. Os bandidos, àquela altura, ainda estavam na comunidade — no dia anterior, um deles havia sido morto em confronto. No dia 17 de fevereiro de 2009, o GLOBO mostrou que a comunidade havia ganho o seu posto policial. A partir dali, o nome Unidade de Polícia Pacificadora (UPP) foi oficialmente adotado.

Em 2009 e 2010, o projeto foi impulsionado e chegou a morros do Leme, Copacabana, Tijuca, Centro e Ipanema. No fim de 2010, as forças policiais chegaram aos complexos da Penha e do Alemão, em uma operação que se tornou símbolo de um novo momento do estado. “PM avança para ocupar o bunker do tráfico na Penha” foi a manchete no dia 25 de novembro de 2010. No dia seguinte, em letras garrafais: “O dia D da guerra ao tráfico”. Esta edição circulou com um caderno especial de 16 páginas — “A guerra do Rio” — que contava todos os detalhes da operação que contou com o Exército e a Marinha e resultou na fuga em massa de traficantes da Vila Cruzeiro, antes uma área inexpugnável. Após uma semana intensa, na segunda-feira, 29 de novembro, a primeira página estampava: “O Rio mostrou que é possível”. Com direito a bandeira do Brasil hasteada, o Alemão também havia sido ocupado. As UPPS, no entanto, só seriam instaladas em 2012 — hoje são quatro no Complexo da Penha outras quatro no do Alemão. No mesmo ano, foi inaugurada a unidade da Rocinha.

Em agosto de 2009, quase um ano appós a instalação da primeira UPP, o GLOBO começou a publicar a série de reportagens “Democracia nas favelas”. Durante quatro meses, repórteres percorreram o Dona Marta, Chapéu Mangueira, Babilônia, Cidade de Deus, Batam e Tavares Bastos, que não tinha UPP, mas na época abrigava a sede do Bope. Os desafios na relação entre moradores e policiais, os exageros da PM, as ameças de traficantes, a volta de moradores que haviam sido expulsos pelo poder paralelo e a chegada de serviços às favelas foram alguns dos temas abordados. A série, com reportagens de Carla Rocha, Fábio Vasconcellos, Selma Schmidt e Vera Araújo, ganhou o prêmio Esso de jornalismo na categoria Sudeste naquele ano.

Em setembro do ano passado, o comandante da UPP Nova Brasília, no Complexo do Alemão, morreu após um tiroteio com bandidos. Em maio, a intranquilidade voltou a dar as caras em Botafogo: “Dona Marta registra primeiro confronto após criaçãode UPP”, dizia o título de uma matéria no dia 29. O caminho é longo, mas, quem acompanha essa história de perto, acredita que o estado só tem uma saída.

—As UPPs integram um repensar da segurança pública, que inclui a transformação do ensino nas academias das polícias e o nosso sistema de metas de produtividade para um trabalho integrado entre os policiais. Nosso trabalho abriu as comunidades para a entrada do estado e uma agenda de cidadania. Somos apenas o início de um processo do pagamento de uma dívida histórica que a sociedade tem com as comunidades — ressalta Beltrame.