Rio

Guerra do tráfico faz Paraty ter maior taxa de mortes no estado

Dezoito pessoas foram mortas por armas de fogo este ano
Duas moradoras de Paraty que tiveram parentes mortos: a violência transforma a rotina de quem vive na cidade, afetando, por exemplo, o direito de ir e vir, ocorre em áreas fora do Centro da cidade Foto: Antonio Scorza / Agência O Globo
Duas moradoras de Paraty que tiveram parentes mortos: a violência transforma a rotina de quem vive na cidade, afetando, por exemplo, o direito de ir e vir, ocorre em áreas fora do Centro da cidade Foto: Antonio Scorza / Agência O Globo

A mulher está sentada em silêncio. Quando começa a falar, as frases são entrecortadas pelo choro, e as lágrimas escorrem pelo seu rosto. Há uma semana, passava das 23h quando ela ouviu um estampido e gritos vindos do portão de casa, na Favela Mangueira, em Paraty. Num sobressalto, levantou-se do sofá, temendo pelo irmão, que conversava com um amigo do lado de fora. Ao abrir a porta, viu a cena que temia: o caçula da família tinha sido baleado na cabeça e estava morto, em meio a uma poça de sangue.

Conhecida por seu conjunto arquitetônico colonial e por eventos como a Feira Literária Internacional de Paraty (Flip), a cidade tem também um lado sombrio, que cada vez mais assusta seus moradores. Atualmente, o município é, de todo o Estado do Rio, o que tem a maior taxa de mortes provocadas por armas de fogo, numa proporção de 60,9 casos por cem mil habitantes. Na capital, por exemplo, a taxa é de 13,1.

Os dados, de 2014, estão no Mapa da Violência 2016. O estudo, que sempre utiliza números de dois anos antes, é publicado desde 1998 e mostra a evolução das taxas de mortalidade nos estados e municípios brasileiros com mais de dez mil habitantes. É feito graças a uma parceria entre Unesco, Ministério da Justiça, Ministério da Saúde e Faculdade Latino-Americana de Ciências Sociais (Flacso).

Embora 2015 e 2016 não estejam no levantamento, informações da polícia revelam que a violência continua em alta em Paraty. Este ano, até a última quinta-feira, 18 pessoas haviam sido mortas por armas de fogo (o que dá, em média, um assassinato a cada 13 dias). No ano passado inteiro, foram 21 casos.

"ESTAVA FALTANDO UM INOCENTE SER BALEADO"

Facções rivais travam guerra na cidade Foto: Editoria de Arte
Facções rivais travam guerra na cidade Foto: Editoria de Arte

O homem assassinado há uma semana — e que não está identificado nesta reportagem a pedido da família, que prefere manter o anonimato para não sofrer represálias — não tinha passagem pela polícia, nem envolvimento com o tráfico. Segundo as investigações, ele foi morto ao ser confundido com um amigo, que era o verdadeiro alvo do matador.

— No meio de tanto fogo cruzado, estava faltando um inocente ser baleado — lamenta a irmã da vítima. — Meu irmão foi assassinado no lugar de outra pessoa marcada para morrer. Ninguém sabe no que se transformou Paraty.

A violência não atinge todas as áreas da cidade, que tem cerca de 40 mil habitantes. Ela não acontece no Centro Histórico, muito visitado por turistas, mas nos bairros periféricos.

Como na capital, o município sofre os efeitos de uma guerra entre quadrilhas rivais de traficantes instaladas em suas duas áreas mais violentas: Mangueira (controlada por uma facção) e Ilha das Cobras (dominada por outra). São duas comunidades vizinhas, cujos limites podem ser difíceis de identificar. Ficam a menos de um quilômetro do Centro Histórico. Como nas favelas cariocas, ali podem ser vistos jovens ligados ao tráfico usando radiotransmissores para se comunicar com seus cúmplices e com armas na cintura. Eles costumam utilizar bicicletas em seus deslocamentos, seja para vender drogas, seja para cometer assassinatos.

— Está vendo aqueles meninos reunidos ali? São todos do tráfico. Devem estar tramando alguma morte ou combinando de vender droga em algum lugar — desabafa uma moradora da Mangueira, bairro com mais vítimas na guerra do tráfico.

Rua entre favelas da Mangueira e Ilha das Cobras: no muro, o aviso do tráfico aos informantes Foto: Antonio Scorza / Agência O Globo
Rua entre favelas da Mangueira e Ilha das Cobras: no muro, o aviso do tráfico aos informantes Foto: Antonio Scorza / Agência O Globo

Ao contrário das disputas entre quadrilhas na capital, em Paraty, segundo a Polícia Militar, as gangues não tentam tomar territórios. Os assassinatos acontecem mais por vingança de um grupo contra outro. Os bandos, por exemplo, não permitem que um criminoso de uma facção circule pela área de outra. Foi isso o que aconteceu, em meados de agosto, com o jovem Helton Freire de Souza: ele foi morto por rivais porque cruzou “a linha do inimigo”.

— Discussões provocam mortes a qualquer momento. Isso gera uma reação dos amigos da vítima, que se organizam para matar qualquer um que seja da quadrilha rival. É uma bola de neve — diz Flávio Narcizo, delegado da Polícia Civil em Paraty.

Com a violência na porta de casa, moradores se sentem inseguros. Crianças que moram na Ilha das Cobras e estudam na Mangueira vão à escola com medo de sofrer algum tipo de represália. Idosos também vivem temerosos. Uma mulher de 66 anos, por exemplo, que vive na Mangueira, conta que tem receio de passar em qualquer horário pelo bairro vizinho. Para ir ao mercado, prefere pegar um rota alternativa: assim, evita que bandidos da facção da comunidade vizinha a vejam.

— Pode não acontecer nada? Pode. Mas quem garante que não vou sofrer uma represália? — questiona. — Às vezes, uma pessoa pode ter uma pista sobre um assassinato. Mas quem é que vai à delegacia falar?

Outros dois bairros também começam a protagonizar histórias de violência: Pantanal e Condado. O primeiro é dominado pela mesma quadrilha da Mangueira; o segundo, pela que controla a Ilha das Cobras.

— São duas comunidades em que o tráfico já se instalou e onde a repressão terá que ser intensificada, para não virarem outras áreas conflagradas pela criminalidade — diz o capitão Marcos Vinicius Freitas, comandante do Destacamento de Policiamento Ostensivo de Paraty, que conta com 16 PMs para patrulhar a cidade.

POUCOS CRIMES ELUCIDADOS

A impunidade pode ser um dos motivos da escalada da violência. Historicamente, a taxa de elucidação de crimes no município é baixa. Em 2014, por exemplo, dos 24 homicídios por armas de fogo, só três foram investigados por inquéritos e chegaram à Justiça. No ano passado foi ainda pior: dos 21 assassinatos, um virou denúncia. Este ano, a Polícia Civil já conseguiu desvendar seis homicídios.

— Os números melhoraram, mas Paraty sofre por ser a última cidade do estado. Falta estrutura na delegacia, e há grande instabilidade de delegados, o que dificulta qualquer projeto que precise de continuidade — diz o promotor Vinícius Ribeiro, do Ministério Público de Paraty.

Para o professor Mario Brum, da Uerj, especialista em estudos sobre cidadania nas favelas, a violência em Paraty é reflexo do que o tráfico provoca nos jovens em outras comunidades pelo país:

— A ideia de uma facção provoca o sentimento de pertencimento. A consequência disso são ações de combate daquele que é diferente, no caso, o inimigo de outra facção.

O prefeito de Paraty, Carlos José Gama Miranda, que ano passado sofreu uma tentativa de assassinato, afirmou por nota que a segurança pública é uma atribuição do governo do estado. Disse ainda que, desde o primeiro ano de gestão, tem cobrado reforço nos efetivos das polícias Civil e Militar e uma ação integrada de prevenção da violência.