Política 50 anos do golpe

Nas lembranças de Maria Thereza Goulart, o medo, a solidão e o exílio

Viúva de Jango, tida até hoje como a primeira-dama mais bonita do país, conta a saída da Granja do Torto e o reencontro com o marido

Símbolo de beleza e elegância dos anos 1960, Maria Thereza deixou a residência oficial da Presidência carregando apenas duas malas
Foto: arquivo pessoal
Símbolo de beleza e elegância dos anos 1960, Maria Thereza deixou a residência oficial da Presidência carregando apenas duas malas Foto: arquivo pessoal

RIO - Aquela terça-feira amanheceu ensolarada na Granja do Torto, em Brasília. Era 31 de março de 1964, horas antes do golpe que afastaria a família de João Goulart do Brasil por 12 anos. Na noite do dia 30, Jango fizera seu último discurso no Brasil: no auditório do Automóvel Clube, no Rio, diante de militares, sindicalistas e parlamentares, o presidente da República — convidado de honra para a comemoração do 40º aniversário da Associação de Sargentos e Subtenentes da Polícia Militar — denunciou as “forças mais reacionárias” e “os eternos inimigos do povo" que conspiravam contra o seu governo.

Na manhã do dia seguinte, na piscina do Torto, uma das residências oficiais da Presidência, a primeira-dama Maria Thereza tentava se distrair com os filhos. Denise, de 5 anos, e João Vicente, 6, brincavam sem se dar conta do que acontecia no país. A atenção da mãe estava voltada para o rádio, por onde ela acompanhava os acontecimentos daqueles dias.

— A gente já estava numa expectativa muito grande havia uns três ou quatro dias. Eu estava muito preocupada: eu, na Granja do Torto, com os meninos, e Jango, no Rio. A gente já sabia que a situação era muito tensa — lembra ela, em conversa com O GLOBO.

Por volta das 11h, a mais jovem — e bela — primeira-dama da História do país recebeu uma ligação de Tancredo Neves, que lhe pediu que não se preocupasse porque João Goulart estava numa reunião e ligaria para ela em seguida. Meia hora depois, o telefone realmente tocou. E era Jango.

— Ele me ligou, disse que ficasse tranquila, em casa, que ele estava resolvendo problemas e que iria encontrar com a gente mais tarde. Ele não estava tenso, só preocupado conosco.

A casa, como de costume, estava cheia. Empregados, filhos, a governanta Etelvina, o cabeleireiro da primeira-dama, Virgílio, e a amiga Zenália. Quando caiu a noite, o capitão que fazia a segurança oficial avisou que bloqueariam a entrada da residência e pediu que os empregados deixassem o local. Até então, Maria Thereza não sabia que também sairia.

No início da madrugada, o capitão Azambuja, ajudante de ordens do presidente, chegou de avião à Granja do Torto para levar a família a Porto Alegre. Lá, eles se encontrariam com Jango. Foi o tempo de Maria Thereza fazer as malas dos filhos e deixar a casa para onde achou que voltaria dias depois. Deixou para trás todos os pertences. Despediu-se da casa — e do Brasil — vestida com uma saia preta de couro e uma camisa branca de seda. Pouco antes, recebera uma ligação de seu estilista, Dener Pamplona de Abreu, que pediu que ela não viajasse de preto, “ uma cor muito triste”. Ela tinha só 24 anos.

— Às 2h da manhã, o ajudante de ordens chegou e disse que eu teria que me retirar do Torto. Levei duas malinhas para as crianças e nada mais.

Duas horas depois, de madrugada, a família Goulart chegou à capital gaúcha. No avião, os filhos estavam animados. Mas Maria Thereza falou pouco na viagem. Em solo gaúcho, o encontro com o marido demorou a acontecer:

— O Jango já estava lá, mas mandou que eu seguisse para a fazenda do Rancho Grande, onde me encontraria. Só que ele não me encontrou. Mandaram uma pessoa avisar que ele estava em reunião com o (Leonel) Brizola.

Amanhecia quando a família desembarcou na fazenda em São Borja, cidade natal do casal. A ex-primeira-dama lembra com tristeza esse momento e diz que foi o único do exílio em que chorou:

— Chorei um pouquinho. Me senti solitária quando o avião aterrissou na fazenda. Foi uma coisa que me bateu o coração de ver. Acho que é o campo de madrugada, amanhecendo. Você já viu isso? — perguntou, com o olhar distante. — Os bichinhos andando, a casa solitária, sem sol nem nada. É a sensação de solidão. Quando o avião desceu, pensei: o que estou fazendo aqui?

Na fazenda do Rancho Grande, a família se despediu de Azambuja e de um Virgílio aos prantos, que dizia que queria ir para o exílio. Mas eles voltaram para o Rio. Denise, João Vicente, Maria Thereza e Etelvina ficaram a sós. Dormiram um pouco e, por volta das 11h do dia 1º de abril, um jipe do Exército chegou à fazenda. Um capitão bateu na porta e ordenou que eles deixassem a cidade, ou sairiam presos. Horas depois, o bimotor de Jango chegou a São Borja e os levou ao Uruguai.

— Ficamos sozinhos lá na fazenda, esperando o que ia acontecer. Não pensei em nada. Pensei que estava totalmente perdida. Não sabia o que fazer, para onde ir, onde estava meu marido. Era tanto nervosismo que, quando me disseram “vai embora”, eu dei graças a Deus.

“voltinha durou 12 anos”

Cinquenta anos depois, aos 74, ela lembra que, a caminho de Montevidéu, Denise perguntou ao piloto, Manoel Leães, o Maneco, para onde iam:

— Ele disse que daríamos uma voltinha no Uruguai, e a voltinha durou 12 anos — contou, lembrando o abraço que deu no marido no primeiro encontro depois do golpe, já no dia 3 de abril.

De volta ao Brasil, em 1976, Maria Thereza — que diz não entender a comparação com Jaqueline Kennedy e que se considera só “interessante”— recuperou um único vestido de Dener.

— É o único dele que tenho. É lindo: cor areia, de renda francesa, justo no corpo. É um patrimônio. Andei desfilando com ele lá em casa.