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A resistência polonesa pelos olhos de um jovem na Segunda Guerra Mundial

Em diário, Julian Kulski narra a passagem da infância à adolescência em meio ao conflito
O adolescente Julian Kulski, quando pegou em armas na luta contra os alemães Foto: Divulgação/JK
O adolescente Julian Kulski, quando pegou em armas na luta contra os alemães Foto: Divulgação/JK

RIO - No dia 27 de outubro de 1939, quase dois meses depois que as tropas alemãs invadiram a Polônia, Julian Kulski viu o pai chegar em casa perturbado. O prefeito de Varsóvia tinha sido preso pela Gestapo, a polícia secreta nazista. Dali em diante, seu pai, como vice-prefeito, ficaria responsável pela cidade, mas obrigado a responder aos oficiais alemães que ocupavam a capital do país. Julian tinha 10 anos e sabia que a guerra tinha começado. Dois meses antes, sua escola já vinha coletando dinheiro para comprar um barco torpedeiro a motor para defender a Polônia.

Nos seis anos seguintes, Julian se separou da família, foi preso, libertado, lutou na resistência polonesa contra os nazistas e foi preso novamente. Em “A cor da coragem” (Ed. Valentina), ele escreve o diário da dura passagem da infância à adolescência em meio à guerra e à destruição. O texto foi escrito no verão de 1945, na Inglaterra, cerca de dois meses após o fim da guerra. A edição brasileira traz dezenas de fotografias e mapas, além de extras digitais.

Por recomendação de um médico militar, ele reconstituiu no papel aquele período, como parte do tratamento para superar o transtorno pós-traumático. A violência do conflito, ele lembra, ficou clara logo no início.

— Quando a Alemanha invadiu a Polônia, no dia 1º de setembro de 1939, eu estava passando férias de verão numa pequena cidade no Rio Vístula. Assim que as tropas alemãs entraram na cidade, os soldados colocaram fogo numa pequena sinagoga no Centro. Eles amarraram o rabino dentro do prédio em chamas e provocaram os judeus ortodoxos mais velhos a entrar no prédio para salvá-lo. Eu tinha 10 anos, era uma criança, e fui testemunha do tratamento bárbaro dispensado aos civis inocentes — conta Kulski, hoje um arquiteto aposentado de 87 anos, em entrevista por e-mail de Washington, D.C., nos Estados Unidos, onde vive.

Julian Kulski, o primeiro em pé da esquerda para a direita, junto a seus companheiros da resistência polonesa Foto: Divulgação/JK
Julian Kulski, o primeiro em pé da esquerda para a direita, junto a seus companheiros da resistência polonesa Foto: Divulgação/JK

A entrada na resistência armada polonesa ocorreu dois anos depois. Em abril de 1941, os pais de Kulski avaliaram que era mais seguro ele ir morar em outro lugar. O destino foi a casa de seu antigo mestre de escotismo Ludwik Berger. Aos 12 anos, Kulski já praticava seus pequenos atos de rebeldia contra os nazistas, como a retirada de cartazes e a indicação de caminhos errados para os soldados. Três meses depois, Berger revelou ao garoto a existência de uma organização militar secreta, a União para Resistência Armada, e perguntou se Kulski gostaria de aderir. O garoto aceitou na hora. No entanto, nem passava pela sua cabeça o que ele veria no front nos anos seguintes.

— Ninguém que nunca esteve numa guerra pode compreender o que se enfrenta no campo de batalha — diz Kulski. — Nós não podíamos simplesmente desistir e deixar os alemães nos escravizar e nos matar. Tínhamos que lutar, então tivemos que enfrentar tudo que viesse.

Já com uma curta passagem pela prisão, após a rebelião no gueto de Varsóvia em 1943, Kulski combateu nos meses de agosto e setembro do ano seguinte no Levante de Varsóvia. Foram dois duros meses de luta, que terminaram com a rendição. Ele estava exausto e muito fragilizado fisicamente quando se entregou às tropas alemãs.

Julian Kulski é hoje arquiteto aposentado e vive nos Estados Unidos Foto: Divulgação
Julian Kulski é hoje arquiteto aposentado e vive nos Estados Unidos Foto: Divulgação

A luta dos poloneses pela libertação do país do jugo alemão virou uma nota de rodapé na história da Segunda Guerra Mundial, algo que Kulski busca reparar em sua detalhada narrativa sobre o dia a dia no campo de batalha. Ao ser perguntado por que a resistência polonesa é tão pouco lembrada, ele cita um nome: “Stálin”. O sobrevivente afirma que a Polônia foi a quarta maior força militar dos aliados no continente europeu durante a guerra e lutou em todos os fronts, além de ter abrigado a maior resistência não-comunista organizada.

— Mas ao invés de ganhar a sua independência em 1945, no fim da guerra, a Polônia foi traída por seus aliados e entregue à União Soviética — critica. — Para controlar o país, Stálin perseguiu todos que resistiram ao seu poder, e os ex-combatentes da resistência se tornaram alvo preferencial. Ele também montou uma sofisticada campanha de propaganda para esconder e distorcer o papel da Polônia na guerra.

Mais de 70 anos após o fim da Segunda Guerra, Kulski acredita que seu relato é um aviso para um mundo que assiste ao avanço da xenofobia e do racismo:

— Meu diário é um alerta sobre o perigo do mal extremo de que os homens são capazes e sobre a importância de combater esse mal logo nos seus primeiros sinais. Depois, o custo para vencê-lo é muito maior do que você pode imaginar.