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Quebra de sigilo de jornalista: O cala-boca continua vivo

Quebra de sigilo de jornalista: O cala-boca continua vivo

Garantida pela Constituição e celebrada por ministros do Supremo Tribunal Federal, a liberdade de imprensa sofre ataques do próprio Poder Judiciário

24/10/2016 - 09h00 - Atualizado 24/10/2016 19h06
Ney Bello desembargador que pode suspender a quebra de sigilo. (Foto: Agência Senado)

"Não há democracia sem liberdade. Ninguém é livre sem ter pleno acesso às informações, e são os jornalistas e a imprensa a nossa garantia de que teremos sempre as informações prestadas, o direito garantido”, afirmou a ministra Cármen Lúcia, presidente do Supremo Tribunal Federal (STF) e do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), na abertura do Fórum da Associação Nacional dos Editores de Revistas (Aner), na quinta-feira, dia 20. “O tempo do cala-boca já morreu.” A ocasião em que o discurso foi proferido amplifica ainda mais as palavras da presidente da Suprema Corte do país. Há duas semanas, a Aner impetrou um habeas corpus para impedir a quebra de sigilo telefônico do colunista Murilo Ramos, da revista ÉPOCA. O habeas corpus foi distribuído ao desembargador Ney Bello, do Tribunal Regional Federal da 1a Região. Até o fechamento desta edição, Bello ainda não proferira sua decisão. Num artigo publicado em junho, o desembargador reclamou da carga de trabalho no TRF, com cerca de 140 mil processos por ano, para 24 julgadores. “É a mais extensa corte de apelação do mundo”, diz o texto. “Não se faz jurisdição decente com um acervo desse tamanho!”

A quebra do sigilo de Murilo Ramos foi determinada pela juíza Pollyanna Kelly Alves, da 12a Vara Federal de Brasília, em 17 de agosto. Como a decisão foi tomada em segredo, a Aner levou mais de um mês para tomar conhecimento e recorrer. Em sua decisão, a juíza atendeu a uma representação do delegado da Polícia Federal (PF) João Quirino Florio, com anuência da procuradora da República no Distrito Federal Sara Moreira de Souza Leite. No ano passado, Quirino foi encarregado de investigar o vazamento de um relatório do Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf). No relatório, os investigadores do Coaf listavam nomes de brasileiros suspeitos de manter contas secretas na filial suíça do HSBC, no escândalo conhecido como SwissLeaks. A investigação do Coaf e o teor do relatório foram revelados por ÉPOCA em fevereiro de 2015, numa reportagem que contou com apuração de Murilo Ramos. Ouvido pela PF, Murilo recusou-se a revelar a identidade de fontes envolvidas na produção da reportagem. Para isso, invocou o direito de preservar o sigilo de suas fontes.

A Constituição Federal, no Artigo 5º, inciso 12, dá a juízes o direito de quebrar o sigilo à informação: “É inviolável o sigilo da correspondência e das comunicações telegráficas, de dados e das comunicações telefônicas, salvo, no último caso, por ordem judicial, (...) para fins de investigação criminal ou instrução processual penal”. Mas o inciso 14, do mesmo artigo, garante o sigilo às fontes de um jornalista: “É assegurado a todos o acesso à informação e resguardado o sigilo da fonte, quando necessário ao exercício profissional”. “A Constituição libera os magistrados para interceptar comunicação telefônica, mas, como diria Camões, ‘outro valor mais alto se alevanta’. Esse valor mais alto que se alevanta é o inciso 14”, afirma Carlos Ayres Britto, ex-ministro do STF. Para Ayres Britto, que também foi presidente da Comissão Especial de Defesa da Liberdade de Expressão da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), quebrar o sigilo da fonte equivale a quebrar a liberdade de imprensa. “Parece a história da mãe que deixa o filho tomar banho de piscina, desde que ele não se molhe. Que liberdade de imprensa é essa, se os jornalistas estão com seu sigilo telefônico à disposição da Justiça? No Brasil, a liberdade de imprensa não comporta relativização.” Para Claudio Lamachia, presidente da OAB, a quebra do sigilo do colunista de ÉPOCA põe em risco a democracia. “Esse tipo de decisão ilegal precisa ser rapidamente reformada”, diz Lamachia. “É alarmante identificar em 2016, dentro de instituições investigativas e repressivas, servidores públicos que tentam colocar em prática concepções da época da ditadura militar, que não respeitava os direitos básicos dos indivíduos.”

>> Quebra de sigilo de jornalista de ÉPOCA é inaceitável, diz OAB

O Judiciário tem sido usado para constranger e limitar a atuação da imprensa, numa flagrante – e fundamental – contradição. A fragilidade de garantias contribui para manter o Brasil na 99a posição no ranking de liberdade de imprensa elaborado pela organização Repórteres sem Fronteiras. “A liberdade de imprensa absoluta e irrestrita é fundamental à democracia”, diz José Carlos Dias, ex-ministro da Justiça. “Ao mesmo tempo que vemos avanços no combate à corrupção, assistimos diariamente a erros da Justiça, de forma reiterada.” Em 2015, um juiz federal de São José do Rio Preto, interior de São Paulo, quebrou o sigilo telefônico do jornal Diário da Região, a pretexto de descobrir quem informou detalhes de uma operação da Polícia Federal. A legalidade da decisão aguarda decisão do Supremo Tribunal Federal. Desde abril, mais de 40 ações foram movidas contra cinco funcionários do jornal Gazeta do Povo, do Paraná. As ações, padronizadas, foram movidas em 19 cidades do estado. Obrigada a comparecer às audiências, a equipe de jornalistas perdeu tempo e dinheiro. A ação orquestrada foi reação a uma reportagem, publicada em fevereiro, que mostrava como os vencimentos de magistrados e representantes do Ministério Público superavam o teto constitucional do funcionalismo público. “Um sistema que sujeita a manifestação de opiniões e críticas ligadas a questões de interesse público a riscos elevados traduz efetivo modo de censura prévia, na medida em que induz, pela intimidação e pelo medo, o silêncio das consciências”, disse a ministra do STF Rosa Weber, na decisão que suspendeu as ações. “O regime democrático não tolera a imposição de ônus excessivos a órgãos de imprensa.” O tempo do cala-boca já morreu. Mas, mesmo fora de tempo, ele continua vivo. 








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