EuropaSérie ASérie B

- Atualizado em

Luxa tem razão? Entenda a polêmica sobre corrupção no futebol chinês

Esquemas de propinas e manipulação de resultados afetam novo eldorado da bola através dos anos, mas governo trabalha para mudar essa imagem no país

Por Rio de Janeiro

O chinês é capaz de deixar o filho esquecido dentro de um carro no estacionamento enquanto faz apostas nos cassinos

Antes de enfrentar um dos times mais ricos do país, o treinador é avisado para não estranhar uma eventual derrota inesperada e tampouco se irritar com um determinado jogador. O tropeço de fato acontece - com falha do principal zagueiro da equipe, recém-contratado. Na semana seguinte, esse  mesmo jogador é convocado para a seleção nacional, e a profecia está concretizada: o atleta se vendeu para entregar o jogo. O relato acima não é obra de ficção e foi descrito por um técnico que passou pela primeira divisão do futebol chinês nos últimos anos.

- Eles (chineses) não abordam o tema abertamente, mas eu tive jogador que se vendeu em troca de grana e convocação para a seleção chinesa. Há muitos problemas de corrupção na China, assim como em vários países. É proporcional aos milhares de euros e dólares gastos por eles. Isso é cultural lá. O chinês é capaz de deixar o filho esquecido dentro de um carro no estacionamento enquanto faz apostas nos cassinos, e isso é o que eu posso lhe dizer a respeito - disse o treinador, que preferiu não se identificar.

Seleção da China jogo das eliminatórias (Foto: Reuters)Casos de escândalos de manipulação de resultado envolvem basicamente atletas chineses (Foto: Reuters)


 Para o futebol chinês (crescer), tem que parar com a própria corrupção no futebol chinês
Luxemburgo

Muito além dos milhões gastos com nomes como Hulk, Jackson Martínez, Graziano Pellè, Lavezzi, Renato Augusto, Paulinho, entre outros, o futebol chinês se vê no meio de escândalos de manipulação de resultados. Só no início deste mês cinco pessoas foram presas por esse motivo na primeira divisão de Hong Kong - considerado um país à parte, mas anexado ao território chinês. Esse fato coincidiu com uma denúncia semelhante feita pelo técnico Vanderlei Luxemburgo, que comandou no início do ano o Tianjin Songjiang, da segunda divisão da China.

- É constante. Lá (na China) é constante (armado para entregar o jogo). Há alguns anos, muitas pessoas foram presas no futebol da China. Para o futebol chinês (crescer), tem que parar com a própria corrupção no futebol chinês. O presidente da China quer mudar o futebol chinês. Tem enraizadas aquelas coisas ruins que vão sair naturalmente - disse Luxemburgo, em entrevista recente ao programa "Bem Amigos", na qual alegou que um dirigente da sua equipe admitira que os jogos do segundo turno já estariam combinados.

O funcionamento do esquema

Vanderlei Luxemburgo, técnico de futebol (Foto: Reprodução SporTV)Vanderlei Luxemburgo fez a denúncia em entrevista ao programa "Bem, Amigos" (Foto: Reprodução SporTV)

Esses "negócios da China", obviamente, são feitos por baixo dos panos. Envolvem, em geral, apenas jogadores locais, sobretudo por duas razões: a barreira da língua, que impede com que as informações circulem com facilidade, e a diferença salarial em relação aos estrangeiros. Com vencimentos modestos se comparados aos que recebem os astros da bola que chegaram recentemente ao país, alguns chineses não aceitam essa diferença e encontram nesse mercado uma forma de minimizarem isso.

+ Felipão rebate Luxa e nega corrupção
no futebol chinês: "Palavras absurdas"

+ Corrupção, armação e boicote: Luxa
lamenta curta passagem pela China

O agravante é que apostas esportivas, apesar de populares, são proibidas na China - exceto quando feitas dentro das loterias promovidas pelo governo. Por isso, os alvos da polícia vão bem além dos jogadores. Em julho, autoridades do país prenderam mais de 500 pessoas espalhadas por quatro províncias por apostas ilegais durante a Eurocopa, na França. Além disso, o Ministério de Segurança Pública da China confiscou mais de 28 milhões de iuanes (R$ 13,3 milhões) dos apostadores.

 Diante de uma cultura de apostas tão forte - e para evitar que bilhões de dólares em impostos escapem (estima-se em perdas na casa dos US$ 600 bilhões anuais) -, há um forte movimento para legalizar o jogo no país. O colunista americano Adam Minter, correspondente da Bloomberg na Ásia, escreveu recentemente um artigo a favor dessa liberação:

Os zagueiros que recebiam este tipo de oferta, porque poderiam permitir que os adversários marcassem. Os goleiros também eram alvos populares 
Ex-jogador chinês

- Esses números seriam preocupantes em qualquer país. Mas eles são particularmente especiais na China, onde alguns magnatas estão ocupados comprando alguns dos clubes mais famosos do mundo e jogadores talentosos e até mesmo propor uma alternativa viável financeiramente para a Liga dos Campeões. O histórico de corrupção nas ligas chinesas, combinado com as apostas ilícitas, está causando preocupações legítimas que essas aquisições poderiam prejudicar os negócios globais do futebol. A China precisa fazer as pazes com o seu amor por jogos de azar - e legalizá-los. 

As manchas no futebol local aumentam à medida que ampliamos o período de análise, e saímos de 2016 rumo a 2013. Naquele ano, a Federação Chinesa (CFA) multou 12 clubes da elite local em R$ 402 mil (nos valores atuais) e puniu 58 jogadores, dirigentes e árbitros acusados de suborno e manipulação de resultados. Segundo reportagem do jornal inglês "The Guardian" à época, muitos dos jogadores que recebiam R$ 780 mensais (muitas vezes com atraso) recebiam ofertas de até R$ 20 mil para entregarem o jogo.

- Na maioria das vezes, eram os zagueiros que recebiam este tipo de oferta, porque poderiam permitir que os adversários marcassem. Os goleiros também eram alvos populares. Às vezes, toda uma equipe se envolvia no esquema, mas apenas em casos raros. Na maioria das vezes, cinco jogadores ou menos bastavam para atingir o objetivo - disse um ex-jogador chinês (também não identificado), em entrevista ao jornal inglês na época da publicação.

Seleção da China jogo das eliminatórias (Foto: Reuters)Casos são recorrentes: em 2012, 12 times da elite foram multados, e 58 jogadores, punidos (Foto: Reuters)

Os problemas não param por aí. Em 2012, Xie Yalong e Nan Yong, dirigentes que já comandaram a federação local, foram condenados a mais de 10 anos de prisão, acusados de aceitarem propinas por um contrato com a seleção chinesa. Dois anos antes, pouco antes da Copa da África do Sul, a "CNN" fazia uma reportagem para denunciar que o futebol estava abalado por escândalos de corrupção. Mudam os personagens, mas a história é basicamente a mesma. Propinas, apostas, manipulações de resultados, sentenças e prisões...

Até finalista da Champions da Ásia envolvido 

 A China precisa fazer as pazes com o seu amor por jogos de azar - e legalizá-los
Adam Minter

Os esquemas não atingem apenas as principais ligas chinesas. Na mesma semana da denúncia de Luxa, outro escândalo mexeu com o futebol da região. Três jogadores chineses e dois dirigentes do Pegasus, da primeira divisão de Hong Kong, foram presos acusados de envolvimento em um escândalo de manipulação de resultados no país. Um fato reincidente, já que rebaixaram dois times para a segunda divisão local por envolvimento de jogadores por esse motivo na temporada 2013/14.

- Eu, em primeiro momento, não tinha percebido que algum dos nossos jogadores poderia ter se envolvido, porem nós estrangeiros começamos a pensar em alguns jogos que não obtivemos resultados bons contra times menores. Talvez essa possa ser uma das razões de não termos conseguido a liga e só ganharmos copas, que por acaso esse jogadores chineses envolvidos não participaram. Mas o caso citado pelo Luxemburgo é muito maior, o negócio dele é coisa de mafioso e gente grande eu acho. Não deve ter muita coisa ligada entre esses casos - disse o atacante brasileiro João Emir Porto, que atua também no Pegasus e foi pego de surpresa com a notícia.

Jeonbuk FC final Liga dos Campeões da Ásia (Foto: Divulgação / AFC)Jeonbuk FC está na final da Liga dos Campeões da Ásia, mas já esteve envolvido em corrupção (Foto: Divulgação / AFC)


Os valores de esquema não se tornaram públicos, e a sentença deve sair apenas no fim do mês. É provável que sejam condenados a sete anos de prisão. Os  brasileiros do Pegasus garantem que nunca receberam qualquer oferta. Os alvos, assim como na China, são os locais.

Acho até que eles (chineses) devem saber a índole da gente e nem arriscam falar conosco
João Emir Porto, atacante brasileiro em Hong Kong

 - Nunca ninguém me fez nenhuma proposta ou algo do tipo, não faço nenhuma ideia como isso deve funcionar. Acho até que eles devem saber a índole da gente e nem arriscam falar conosco. Eles devem ir atrás dos chineses que, como comentou o Luxemburgo, já tem uma inclinação para coisas do tipo- completou o atacante gaúcho, que já passou pelo Brasil de Pelotas e, entres idas e vindas, iniciou no futebol de Hong Kong em 2011.

Indo mais ao leste, a vizinha Coreia do Sul também se viu em meio a um escândalo de corrupção. Com o agravante de que envolve o atual bicampeão nacional, o Jeonbuk Motors - que também está classificado para a final da Liga dos Campeões da Ásia e tem boas chances de disputar o Mundial. O clube foi multado em 100 milhões de wons (R$ 280 milhões) e perdeu nove pontos nesta temporada por ter feito pagamento a árbitro na edição de 2013 do Campeonato Coreano. O dirigente responsável por pagar os subornos foi condenado a prisão. A diferença entre esse caso e o dos chineses é que, a princípio, não envolve manipulação de resultados por parte dos atletas.

Governo da China entra em cena

O fato é que os escândalos estão aí, manifestados em denúncias, prisões, multas e punições tanto aos clubes quanto aos jogadores. Com o objetivo de alavancar o futebol do país e até mesmo sediar uma Copa do Mundo nos próximos anos, o governo chinês entrou em cena para, em conjunto com a federação local, implementar um comitê de reforma com 50 pontos sugeridos para levantar o futebol nacional. Alguns deles tratam diretamente de questões envolvendo corrupção.

- A organização da competição e a direção do departamento desportivo devem cooperar com as respectivas autoridades de segurança pública para fortalecer a gestão. Todos devem cumprir as suas funções, otimização de medidas de segurança. A polícia é responsável pelo monitoramento da segurança e da ordem nos jogos de futebol. A organização assegura a segurança do local do jogo e seus arredores, reprimindo atividades ilegais e criminosas, promovendo o entretenimento dos torcedores e cumprindo a disciplina e a regra - diz um dos pontos divulgados no documento.

Xi Jinping, David Cameron, Patrick Vieira e Khaldoon Al Mubarak (Foto: Getty Images)O presidente da China, Xi Jinping, com Patrick Vieira: Governo da China entra em cena (Foto: Getty Images)


Para isso, governo e federação levantaram uma série de medidas práticas que poderiam contribuir contra casos do tipo.

- Fortalecer a gestão dessa indústria. Garantir que os árbitros sejam imparciais. Treinadores e jogadores devem seguir o regulamento. Medidas de precaução rigorosas. Ação rigorosa contra a violação das leis da indústria do futebol. Melhorar a ação disciplinar. Os departamentos de gestão de futebol, segurança pública e outras áreas precisam reforçar a cooperação. Construir um mecanismo cooperativo, onde atividades ilegais possam ser relatadas. Prevenção eficaz. Detecção precoce. Ação determinada contra quadrilhas e falsários envolvidos em atividades criminais.

Brasileiros na China estranham e negam apostas

Luiz Felipe Scolari Felipão Guangzhou Evergrande (Foto: AP)Luiz Felipe Scolari rebateu Luxemburgo (Foto: AP)

O assunto é delicado entre os inúmeros brasileiros que participam das principais ligas do futebol chinês. Muitos evitam falar sobre o assunto - até de forma natural, pois evita assim qualquer comprometimento com aqueles que pagam seus salários. Os que aceitaram se pronunciar publicamente garantem que nunca viram qualquer tentativa de interferência vinda de fora dos gramados, como declarou recentemente Luiz Felipe Scolari, técnico do Guangzhou Evergrande, clube que está a uma vitória de conquistar o sexto título chinês em sequência.

- Acho totalmente absurdas as palavras do Vanderlei, totalmente infundadas. Nós estamos aqui trabalhando há um ano e meio no Guangzhou Evergrande e podemos dizer que conhecemos algumas situações do campeonato aqui, envolvendo as equipes que jogam. Nunca se ouviu falar neste momento de algum detalhe diferente do normal realizado em campo. Se aqui aconteceu, há alguns anos, episódios neste sentido, no Brasil ocorreu também. E o Luxemburgo conhecia também, fazia presença nos campeonatos. É uma situação um pouco estranha para mim, absurda. Nós todos no clube ficamos chateadíssimos com esse tipo de atitude, pois começam aqui na China a ter preconceito com os brasileiros por esse tipo de declaração absurda. E tem detalhes que são infundados, totalmente - disse Felipão, rebatendo as declarações de Luxa, em entrevista à "Espn Brasil".

 Acho totalmente absurdas as palavras do Vanderlei, totalmente infundadas
Felipão

 Os jogadores que foram procurados pela reportagem se esquivaram. A maioria se recusou a dar entrevista sobre o assunto. Quem falou, estranhou a existência de manipulação de resultados, como foi o caso do ex-atacante de Flamengo, Grêmio e Cruzeiro Marcelo Moreno, que desde o ano passado defende as cores do Changchun Yatai.

- Eu acho estranho ouvir falar disso de um treinador experiente. Pessoalmente, nunca ouvi. Para mim, é uma surpresa. O contrato é muito sério. Ele estava na segunda divisão, não sei como é lá. Na primeira divisão, eu nunca ouvi falar disso. Eu vejo evolução do futebol daqui. Acho que é um campeonato muito sério para esse tipo de comentário. Eu não ouvi nada disso. Se eu tivesse ouvido alguma coisa, falaria - completou Moreno, também indo de encontro com as declarações de Luxemburgo.