Brasil

Projetos popularizam a atuação de arquitetos em moradias

Apenas 15% dos brasileiros constroem sob orientação profissional
O Núcleo Habitacional da Rocinha, assinado pelo arquiteto Jorge Mario Jáuregui Foto: Divulgação
O Núcleo Habitacional da Rocinha, assinado pelo arquiteto Jorge Mario Jáuregui Foto: Divulgação

RIO - Do alto do Morro Vital Brazil, em Niterói, a aposentada Maria Alves da Conceição conta como adora apreciar a vista da comunidade a partir da sua varanda.

— É a parte que mais gosto da minha casa. Faço tudo aqui. Tomo café, almoço... Nem ligo se estão me olhando. Gosto de observar a paisagem imaginando que é Jerusalém — diz ela, que é evangélica e tem entre suas principais atividades os cultos e os trabalhos que faz numa igreja perto dali.

Maria adquiriu o imóvel em 2011 sob a premissa do “era o que dava para comprar”. Inicialmente erguida sem os devidos cuidados técnicos, a casa refletia um problema recorrente no Brasil: apenas 15% das pessoas constroem sob orientação de arquitetos ou engenheiros, como mostrou uma pesquisa do Datafolha divulgada no ano passado pelo Conselho de Arquitetura e Urbanismo do Brasil. No caso da aposentada, o que fez a diferença foi uma reforma no valor de R$ 42.498, captados via crowdfunding pela ONG Soluções Urbanas, uma das iniciativas dedicadas à popularização da arquitetura, que começam a ganhar corpo no país.

Com dois quartos, área, sala, cozinha e banheiro, a casa é cuidada com esmero por Dona Maria. Ela sabe o valor de cada parede pintada e do telhado elevado. Quando se mudou, o imóvel não tinha reboco, o chão era de terra batida, apenas um dos quartos tinha janela e o teto ficava a pouco mais de dois metros do chão.

— Quando varria, logo tinha que tomar banho e lavar a cabeça, porque a poeira grudava toda no meu cabelo. No verão, era muito quente também. Em vista do que era, minha casa hoje é um castelo — compara ela.

IMPACTO NA SAÚDE

Fundada há 15 anos pela arquiteta Mariana Estevão, a Soluções Urbanas aproxima o trabalho destes profissionais das famílias que vivem em favelas. Por meio do projeto Arquiteto de Família, executado em parceria com o Instituto Vital Brazil, a ONG promove a elaboração de projetos e reformas, a capacitação de mão de obra e o acompanhamento técnico das moradias.

— Mostramos que a intervenção profissional não diz respeito apenas a cuidados estéticos, mas trata da segurança e do bem-estar também — afirma Mariana. — Ainda são poucos os estudos no Brasil que relacionam saúde e habitação. Mas sabemos, por exemplo, que 25% das ocorrências de traumatismo craniano em São Paulo são causadas por quedas da laje. Também conhecemos pessoas que venceram uma depressão após ter a casa reformada.

A casa de Maria Alves, em Niterói, teve a reforma completa viabilizada por meio do trabalho da ONG Soluções Urbanas Foto: Mônica Imbuzeiro / Agência O Globo
A casa de Maria Alves, em Niterói, teve a reforma completa viabilizada por meio do trabalho da ONG Soluções Urbanas Foto: Mônica Imbuzeiro / Agência O Globo

Como observa Mariana, muita gente ainda não se dá conta de como a moradia digna é um direito que jamais deve ser nivelado por baixo. Frequentemente criticados pela impessoalidade, alguns conjuntos habitacionais seguiram na direção contrária graças aos cuidados especiais de arquitetos. Com nove prédios de quatro pavimentos totalizando 144 apartamentos, o Núcleo Habitacional da Rocinha, assinado pelo arquiteto Jorge Mario Jáuregui, é um deles.

— É um bom exemplo de configuração de espaços de uso coletivo, a partir de edificações que atendem às normas do programa Minha Casa Minha Vida, com ambientes de convivência e uma praça de articulação com o entorno como coração do núcleo — descreve Jáuregui. — Cada prédio tem circulação de acesso de um lado e varanda do outro, o que permite às mães vigiar os filhos que brincam nos espaços comuns no térreo.

Também foram os próprios moradores que ambientaram os espaços de convívio, com vegetação e jardineiras que escolheram e conservam. Segundo Jáuregui, ter pensado em todos esses aspectos possibilitou uma palpável apropriação do lugar pelos moradores, com os resultados extrapolando até mesmo os limites da construção.

— A população do entorno imediatamente começou a utilizar a praça como lugar de encontro e convivência — diz.

DESAFIO ACEITO

Tornar a arquitetura acessível é tão desafiador quanto transformador. Por não se intimidar, a equipe do escritório paulista Terra e Tuma abraçou uma experiência que rendeu reconhecimento internacional: o projeto da casa de Dona Dalva, no bairro de Vila Matilde, em São Paulo, recebeu o Prêmio Archdaily de melhor casa do mundo.

A demanda inicial consistia em usar R$ 150 mil poupados pela moradora e seu filho para reformar a casa. Mas, ao visitar o imóvel, a equipe descobriu que a estrutura estava seriamente comprometida. Mas mesmo com o orçamento considerado enxuto para os padrões paulistanos, o escritório construiu uma casa desde a sua fundação.

— Ela poderia ter comprado um apartamento popular. Mas teria que abrir mão de toda a rotina e da vizinhança às quais estava acostumada há anos, além de provavelmente morar num prédio sem elevador — conta o arquiteto Danilo Terra, coautor do projeto.

A casa de Dona Dalva, construída com orçamento de R$ 150 mil Foto: Divulgação
A casa de Dona Dalva, construída com orçamento de R$ 150 mil Foto: Divulgação

Em seis meses, a equipe demoliu a casa antiga e ergueu a nova. Construído sobre um lote com 4,8m de largura por 25m de profundidade, o imóvel tem dois pavimentos, pátio central para iluminar e ventilar e horta na parte superior. Tudo com acabamento caprichado.

— A obra foi totalmente paga pela moradora. Não é um projeto que sustente um escritório, mas isso não significa que seja inviável — avalia Terra.

Segundo ele, é importante que os escritórios se abram a estas possibilidades, até mesmo para mudar a visão que a população tem sobre o trabalho dos profissionais.

— Não adianta ficar dando uma de gênio incompreendido que deseja fazer apenas a obra-prima — afirma ele. — Os arquitetos se tornaram inacessíveis e não se sentem satisfeitos quando atendem a um projeto que considerem menos revelante. Mas é preciso enxergar esse ofício.

KITS DE REFORMA

Outra iniciativa em São Paulo é o Programa Vivenda, que desenvolveu kits para reformas, incluindo planejamento e mão de obra. Divididos em banheiro, cozinha, quarto, sala e área de serviço, cada um custa cerca de R$ 5 mil, divididos em parcelas em torno de R$ 300.

— Nosso foco é melhorar a saúde e a qualidade de vida das pessoas de baixa renda. E quando fomos entender quais eram as principais patologias habitacionais, nos deparamos com coisas simples, como falta de ventilação e iluminação natural, excesso de umidade ou falta de piso e revestimento. Então, optamos por trabalhar com soluções simples e de baixa complexidade, porém com alto impacto social — explica Fernando Assad, um dos responsáveis pelo programa.

Em pouco mais de dois anos de operação já foram cerca de 300 reformas. A equipe ainda opera apenas com um escritório, em uma comunidade da Zona Sul de São Paulo, mas já se programa para abrir a segunda unidade no início do ano que vem, na mesma cidade. Planos futuros incluem chegar aos quatro cantos do país. Motivos não faltam:

— Nossas avaliações mostram que as principais mudanças na vida das pessoas decorrentes das reformas estão ligadas à auto-estima, sociabilidade, saúde e estímulo à transformação. Traduzindo isso na fala dos clientes, o que mais ouvimos é “agora posso chamar meus amigos para virem em casa”, além do clássico “como vi que dá para fazer,, quero reformar a casa toda!”. Ou seja, o impacto de uma reforma transcende a dimensão física. Atinge diretamente a vontade de progredir das pessoas.