Renda com o disco póstumo de Sabotage ficará para a família do músico Foto: Divulgação

Rappers exaltam legado de Sabotage e analisam disco póstumo

Rapper paulista foi morto em 2003; disco tem reforço de produtores e artistas

Renda com o disco póstumo de Sabotage ficará para a família do músico - Divulgação

por Luccas Oliveira

RIO — Na mesma semana em que o rapper paulista Sabotage foi morto, há 13 anos, ele trabalhava em gravações para um próximo álbum, que sucederia o elogiado "Rap é compromisso", de 2001. Os rascunhos deixados foram o suficiente para que o trio por trás do Selo Instituto (Daniel Ganjaman, Tejo Damasceno é Rica Amabis) convocassem produtores e artistas consagrados da cena, como Tropkillaz, Rappin’ Hood, BNegão, Dexter, Céu e integrantes da família RZO (DJ Cia, Sandrão e Negra Li) e transformassem os esboços em um novo álbum de inéditas, que chegou ao Spotify na última segunda-feira. Todos abriram mão de seus direitos em favor dos filhos de Sabotage, Wanderson e Tamires.

Precursor da mistura de rap com outros ritmos, o Maestro do Canão marcou a geração que hoje faz hip hop no Brasil. Além de trazer uma crítica de "Sabotage", O GLOBO ainda conversou com Aori, Don L, Emicida, Marcelo D2, Rael e Rashid.

Sabotage continua a influenciar o hip hip nacional

Mauro Mateus dos Santos foi morto a tiros em janeiro de 2003, prestes a completar 30 anos, perto da comunidade onde morava, na Zona Sul de São Paulo. Já as rimas ágeis e malandras de Sabotage, sua persona artística, seguem vivos na cena da música nacional. É o que dizem, de maneira unânime, rappers que, a convite do GLOBO, ouviram e comentaram “Sabotage”, o aguardado disco póstumo do Maestro do Canão, lançado digitalmente na semana passada.

— Esse disco comprova uma tese que temos há tempos: Sabotage estava muito à frente de seu tempo. Olho para ele como um Itamar Assumpção ( 1949-2003 ), mas felizmente cercado por um movimento que optou por proteger seu legado, diferentemente do que a MPB fez com Itamar — compara o rapper paulistano Emicida, de 31 anos. — Suas fusões, sua rítmica, sua linha de raciocínio continuam incrivelmente atuais. Aliás, até a temática continua infelizmente muito atual quando se fala de mazelas sociais, raciais.

O carioca Marcelo D2, por sua vez, já estava na correria antes de Sabotage aparecer na cena, e pôde observar a criação do mito por trás do ex-assaltante e gerente do tráfico que largou a vida no crime para dar voz à realidade da favela do Canão, onde cresceu ouvindo de Chico Buarque a Afrika Bambaataa, de Barry White a Wu-Tang Clan (e, mais tarde, Sandy & Junior) — histórias contadas na biografia “Um bom lugar” (2013), assinada por Toni C., e no documentário “Maestro do Canão” (2015), dirigido por Ivan 13P.

— Sabotage trouxe uma maneira nova de escrever rap em português — exalta D2, 48 anos, a partir dos Estados Unidos, onde está para uma série de shows com o Planet Hemp. — Neste que talvez seja o momento mais pop do rap nacional, esse disco vem perpetuar a lenda de um dos maiores da nossa cultura. Muita gente hoje em dia quer começar a rimar, e acho importante que conheçam a história do hip-hop. Sabotage vive no coração e na mente de quem ama essa cultura.

“Sabotage”, o disco, nasceu a partir de rascunhos de gravações feitas pelo rapper na semana de sua morte — a faixa “Quem viver verá”, por exemplo, foi escrita na véspera. Os esboços ganharam o reforço de produtores e artistas consagrados, como Tropkillaz, Rappin’ Hood, BNegão, Dexter, Céu e integrantes da família RZO (DJ Cia, Sandrão e Negra Li), que cederam os direitos do trabalho para Wanderson e Tamires, filhos de Sabotage. O projeto foi capitaneado por Daniel Ganjaman, Tejo Damasceno e Rica Amabis, trio por trás do Selo Instituto, que produziu “Rap é compromisso” (2001), primeiro e até então único disco de estúdio do Maestro do Canão — considerado um dos mais importantes do rap nacional, o álbum vendeu mais de 1,7 milhão de unidades.

MAIS OUVINTES

Se a intenção do disco póstumo era homenagear e chamar a atenção da nova geração para a importância de Sabotage, parece que funcionou. Desde seu lançamento, pelo Spotify, a plataforma de streaming registrou um aumento de quase 2.000% na reprodução de músicas de Sabotage e de 570% em novos ouvintes. As músicas do álbum já ultrapassaram a marca de 1,1 milhão de reproduções, sendo a faixa de abertura, “Mosquito” (colaboração do duo de produtores Tropkillaz), a mais ouvida.

— Transformar essas guias não finalizadas em um álbum é um trabalho muito delicado e importante para a memória dele, assim como uma fonte de renda relevante para a família. O Sabotage vinha experimentando muito, e dava para ver que ele estava desenvolvendo algo que nunca teremos o privilégio de ver como seria no auge. A gente tem o “Rap é compromisso”, que é o máximo do Sabotage na sua primeira fase. O que viria depois foi interrompido na metade do processo, mas o que os caras fizeram com essa metade já é grandioso — analisa o rapper cearense radicado em São Paulo Don L, de 34 anos.

O discurso de Don L vai ao encontro ao que diz uma gravação incluída na faixa “País da fome: homens animais”, uma das mais tocantes do disco (Sabotage chega a chorar ao rimar sobre sua relação com a família): “O processo aponta que o Sabotage estava encontrando a redenção da vida dele através da arte”. A música lembra ainda a contribuição do artista para o cinema, que passou a ser uma de suas paixões antes de morrer — ele participou diretamente de “O invasor” (2002), de Beto Brant, e de “Carandiru” (2003), sucesso de Hector Babenco.

Mestre no trato áspero e inventivo com a língua
por Leonardo Lichote

Sabotage não é só um grande (o maior?) do rap brasileiro — é um artista que está entre os mestres na lida com a língua portuguesa. Sem abrir mão da temática combativa ou da crônica direta da periferia (ambas caras ao gênero), ou seja, sem precisar buscar combustível para suas rimas em sagacidades da cultura pop, sua obra inventa como se faca-só-lâmina de João Cabral, ou um Guimarães Rosa de aspereza primitiva. Referências que não se prestam à legitimação (desnecessária) do rapper, mas a deixar claro o nível de criação no qual ele opera.

“Sabotage”, o disco, é entrecortado por exemplos — mais até do que o ouvinte é capaz de captar — que reafirmam essa grandeza. Versos como “Conheceu cola/ Pisou lá no pó/ Parou na pedra” (“País da fome: homens animais”), ditos com sua dicção sempre surpreendente e ao mesmo tempo carregada de naturalidade de fala da rua — cada palavra cai precisa, justa, mineral, forma-e-conteúdo em estado bruto.

O álbum traz essa poética rara — extraída de gravações feitas há mais de uma década —, perfeitamente adequada aos arranjos que falam a língua de 2016. Um mérito dividido entre os produtores e o próprio Sabotage, que segue novo. O resultado não soa como tributo ou uma coletânea de sobras, mas sim como um disco de rap hoje — Sabotage não parece ali um antecessor de nada, mas um rapper contemporâneo de Emicida, Criolo, Costa Gold ou MC Sant.

Há coesão entre as diferentes sonoridades exploradas ali, do samba-rap “Maloca é maré” (com participações como Rappin’ Hood e Duani) até a contundência em meio à elegância soul de “Canão foi tão bom” (com Negra Li) — poesia dura em corpo maleável de maloqueiro. A síntese vem na última faixa: “Como um míssel, pode crer/ Cruel, cruel, cruel, cruel”.

Cotação: Ótimo

Aori

"O Sabota é um divisor de águas na arte da rima brasileira. Ele era um liquidificador de influências tinha uma levada elementos de várias partes da diáspora Africana, desde o rap americano até o dancehall da Jamaica. O proceder que ele mandava nas letras é intocável, disciplina das ruas pura, e, com certeza, educou mais de uma geração . Era mais que um MC como Mos Def e Lauryn Hill , ele rapidamente transcendeu não só musicalmente quanto na sua imagem, o penteado antenado dele fez ele diferente de todos os rappers da época.

Lembro-me de um show no Hutuz, ele com um terno branco, e a plateia carioca totalmente hipnotizada. Ele combinava técnica e emoção de uma maneira muito instintiva. O novo disco eterniza e comprova que Sabotage é um dos melhores rappers da história do rap brasileiro. As rimas fluem como se tivessem sido escritas ontem, o sentimento é tão atual! Melhor album de hip hop do ano e acho que é um dos melhores lançados esse ano em geral".

Don L

"O Sabotage tinha um pensamento à frente, e moral dentro da cena pra impor o que ele pensava. Lembro-me de onde eu estava na primeira vez que eu ouvi, e lembro onde eu estava quando soube que ele tinha sido assassinado. Por aí você tira que foi um cara que marcou minha caminhada. Sempre tive o mesmo tipo de aspirações que ele, e quando ele surgiu, me deu um ânimo pra continuar com o projeto da mixtape do meu grupo, o Costa a Costa, que também era algo extremamente impactante dentro da cena, e as ideias dele me davam um pouco de fé de que eu não era o único que pensava diferente sobre os caminhos do rap.

O disco traz de volta a lenda, e é importante que a molecadinha saiba mais sobre ele. Transformar essas guias não finalizadas em um álbum é um trabalho muito delicado e importante para a memória dele, assim como uma fonte de renda relevante para a família. O Sabotage vinha experimentando muito, e dava para ver que ele estava desenvolvendo algo que nunca teremos o privilégio de ver como seria no auge. A gente tem o “Rap é compromisso”, que é o máximo do Sabotage na sua primeira fase. O que viria depois foi interrompido na metade do processo, mas o que os caras fizeram com essa metade já é grandioso

Numa época dessa, em que ressurgem ondas de fascismo, o Brasil precisa conhecer o que o Sabotage representa, porque isso está mais vivo do que nunca".

Emicida

"O último disco comprova uma tese que já dizemos há tempos: ele estava muito à frente de seu tempo. Olho para ele como um Itamar Assumpção, mas felizmente cercado por um movimento inteiro que optou por proteger seu legado, diferentemente do que a MPB fez com o Itamar. Suas fusões, sua rítmica, sua linha de raciocínio continuam incrivelmente atuais. Aliás, até a temática continua infelizmente muito atual quando se fala de mazelas sociais, raciais. Definitivamente ele puxou e incentivou um fluxo criativo que veio a originar toda uma geração mais ousada e mais livre no que diz respeito ao que até então era tabu no movimento, como exposição e temática das letras. Torço muito para que a geração de hoje saiba reconhecer o valor de sua obra e genialidade, tanto pro rap quanto para a música brasileira".

Marcelo D2

"Eu comecei um pouco antes do Sabotage aparecer na cena e me lembro da primeira vez que o Zegon me falou dele. O primeiro disco dele, além de já ser um clássico, trouxe uma nova perspectiva pro rap naquele momento. Sabotage trouxe uma maneira nova de escrever rap em português e isso foi fundamental.

Nesse, que talvez seja o momento mas pop do rap nacional, esse disco vem perpetuar a lenda de um dos maiores da nossa cultura. Muita gente hoje em dia quer começar a rimar e acho muito importante que conheçam a história da cultura hip hop. Sabotage vive hoje no coração e na mente de quem ama essa cultura. As letras desse disco são sensacionais, a visão dele do mundo ainda esta muito atual. Ele rima com uma facilidade e com uma malandragem única.

Fico pensando como seria ele agora preparando um disco, com mais experiência de estúdio. A produção musical não podia estar em melhores mãos, reuniram a nata e o que há de melhor no Brasil, seguiram fiel ao estilo do Sabotage dando espaço pro novo. O Ganjaman está em um momento muito bom e dá pra sentir que o disco foi feito com muito amor e respeito".

Rael

"Sabotage me influenciou bastante. Ele era um cronista das quebradas: o que ele falava nas letras sobre a favela em que ele vivia acontecia nas outras favelas também. Muita gente se identificava, eu me identificava com aquilo. Quando ele foi pro cinema, me inspirou a me atrever e a buscar outros caminhos também. Aquilo me mostrou que eu poderia ocupar qualquer lugar na sociedade, e foi uma quebra de barreira muito importante para a cena do rap. Acabei até fazendo trabalhos na TV nessa época. Sobre o disco, eu estava sentindo falta daquele jeito de falar, as gírias de favela, aquele jeito de rimar, que é muito único. Musicalmente está impecável. O time do Instituto soube pegar essas guias e aproveitar bem. As participações também são muito boas: BNegão, Rappin Hood, Sandrão, Bomba, Shyheim…".

Rashid

"Além da mensagem e da musicalidade, acredito que o Sabotage contribuiu muito para que a gente tivesse consciência da nossa liberdade artística. Ele circulou em vários meios, rimou ritmos diferentes, falou de coisas diferentes num momento em que isso não era tão comum. Então, pra mim, Sabotage foi essencial pra que eu pudesse descobrir que realmente sou livre dentro da arte e isso não me fará perdeu minha base, minha raiz.

Gostei muito da sonoridade e da ousadia do novo álbum. O Sabotage me parecia ser realmente ousado, então abrir o disco com uma faixa com o Tropikillaz, por exemplo, me pareceu muito propício mesmo. Para mim, o "Sabotage" é tão importante hoje como "Rap é compromisso" foi antes. Ele era alguém que se comunicava com a quebrada, trazendo uma mensagem de autoestima, de mudança, e de que é possível a gente se comunicar com os outros universos ao nosso redor através de nossa música. É uma coisa em que acredito e falo muito sobre, mas, sem dúvida, quando vem da boca de uma lenda do rap brasileiro, o peso é muito diferente".