Quinta-feira - 24/11/16
Na escadinha da entrada do
prédio da TV Globo na Lopes Quintas, no Jardim Botânico, encontrei
Guilherme Marques apressado, provavelmente voltando de alguma pauta. Eu
também, apressada. Nós, jornalistas, vivemos assim. Apressados com a
maioria das coisas nas nossas vidas.
Foi na calçada mesmo. Aquele sorriso que todo mundo cita ao falar sobre o Guilherme.
- E aíiiii, cara! - ele disse.
Contei
as novidades, de que trabalharia com eles nos próximos quatro meses, no
programa. Ele ficou feliz. Eu estava feliz por saber que teria alguém
mais próximo para contar no ambiente profissional. Rimos de um VT
engraçado que foi ao ar naquele dia mesmo, e ele havia participado,
sobre a última rodada da Série B do Campeonato Brasileiro. Demos um
abraço rápido, como de costume, e encerramos a rápida conversa com o
habitual "depois a gente se fala melhor".
Não nos falamos mais. Não sabia que era aniversário dele no dia seguinte, não disse nada a ele. Apenas não nos falamos mais.
O
que veio depois, com todos os trágicos acontecimentos, falo como
jornalista. Eu não tinha a menor ideia de como a nossa rotina mudaria no
trabalho nessa última semana. A terça-feira que demorou longos dias
para terminar.
Desde o dia do acidente, todos
da redação do GloboEsporte.com se organizaram em horários atípicos de
trabalho. Dezenas de mãos aflitas sobre os teclados e olhos atentos em
todos os noticiários, programas e redes sociais possíveis, para não
deixar escapar nada de importante.
Os
pensamentos desesperadores sobre a perda de amigos, colegas, conhecidos
de profissão vinham à cabeça "do nada". Era devastador. Continua sendo.
Presenciei a dor de amigos que tinham amigos próximos no voo. Que tinham
histórias mais longas com eles, muito mais do que eu até, e um monte de
páginas em branco para preencher.
Mas foi
impossível não compartilhar a dor. Enquanto, bravamente, amigos faziam,
diretamente de Chapecó e Medellín, uma cobertura intensa e brilhante dos
horríveis fatos, eu pensava o quão difícil devia ser aquilo. Gente que
falou com os familiares das vítimas, que viu de perto os destroços do
avião... Não conseguia imaginar, para falar a verdade.
Nós,
aqui no Rio de Janeiro, esperávamos para saber quando nossos amigos
chegariam e seriam velados. E me toquei que alguém teria que fazer a
cobertura daquele evento sinistro. Afinal, eles também foram vítimas da
tragédia, eles também causaram comoção, eles também receberiam a
solidariedade e o carinho de familiares e amigos.
Só
que muitos desses amigos somos nós. Com a escala apertadíssima do
plantão do fim de semana, me coloquei à disposição para trabalhar no
velório de Ari Júnior, Guilherme Marques e Guilherme Van Der Laars, em
General Severiano, a sede do Botafogo. Achei que por ser menos próxima
do que outros amigos, ou então por só conhecer, de fato, o Gui Marques, a
tarefa se tornaria menos difícil para mim.
Que engano...
Sábado - 03/12/16
Encontrar
profissionais na mesma situação do que eu, na manhã em General
Severiano, foi de alguma forma reconfortante. Quero deixar registrado
meu carinho, particularmente, a dois repórteres que lá estavam cobrindo e
diversas vezes entraram ao vivo com a voz embargada e semblante
emocionado, mas fizeram o que tinham de fazer: Aline Nastari, do Esporte
Interativo, e Eudes Júnior, do SporTV - assim como suas equipes.
Esperar
os caixões e informar a chegada ao velório foi a tarefa mais árdua do
dia. Já havia um atraso em relação ao horário previsto por causa de
trâmites burocráticos. Para seguir a cartilha, eu precisava relatar com
sobriedade o ambiente.
Quando os carros da
funerária chegaram, aquela correria para todos se posicionarem e abrirem
passagem. Aperto no peito. Celulares e câmeras a postos. Ver os caixões
foi um baque. Lá estavam eles, depois de dias de agonia. Eram nossos
amigos, nossos colegas.
A missão de registrar
uma foto tornou-se dilacerante quando uma mulher, pedestre, passava no
exato momento e gritou para nós, jornalistas:
- Bando de abutres!
Não,
nós não somos abutres. Sei que é difícil entender o trabalho do
jornalista e sua relação com o que é notícia, e que muitas situações
desse mundo louco corroboram para que enxerguem apenas o que é ruim e
mesquinho, mas aquele momento era de tristeza geral. Geral mesmo. Eu
garanto que ninguém gostaria de estar cobrindo aquilo. Precisávamos.
Devíamos respeito e tratamento igual aos nosso colegas, assim como foi
dado a todas as vítimas.
Nas seis horas que
passei em General Severiano, me alternei entre jornalista e amiga do
Guilherme. Entre a calçada permitida às pessoas da imprensa que estavam
trabalhando e o salão carregado de emoção dura, cruel e ao mesmo tempo
bonita. Vi coroas de flores, homenagens impactantes, tristeza dos
familiares, salva de palmas, balões brancos, dor, dor e dor. Elementos
que eu jamais esperava usar em uma matéria.
Consolei
amigos e fui consolada por eles. Fui lá para me despedir e também para
trabalhar. Uma linha tênue, mas que tinha que ser percebida por mim.
Tudo era inacreditável naqueles momentos. E lá estava eu, tentando
contar a história do fim da sua história por aqui, Gui.
As
imagens daquela tarde vão me acompanhar por bastante tempo. Que
injustiça falar de você, Gui, contando logo essa história. Porque todas
as histórias que ouço de você são boas. Todas começam com o seu sorriso.
Sempre procurei evitar clichês e repetições no jornalismo, mas hoje eu
não consigo. Você é um moleque muito especial.
Vocês
fizeram com que lançassem um olhar diferente sobre a nossa profissão.
Um olhar mais amigo, um olhar mais caloroso. Que por vezes falta até
entre nós mesmos. Como o que Dona Ilaídes, mãe do goleiro Danilo, deu ao
Guido em Chapecó (Veja no vídeo acima). Não foi só o Guido que se sentiu acolhido. Fomos todos
nós.
Definitivamente, não era para ser essa a nossa pauta. A de nenhum jornalista. Mas outras virão, pode ter certeza.
E depois, quando der, a gente se fala melhor.