OPERAÇÃO CALICUTE

O ex-governador Sérgio Cabral chega à sede da PF após ser preso em casa , no Leblon Foto: Celso Barbosa / .

A TORMENTA DE CABRAL

Preso pela Lava-Jato, ex-governador é acusado de liderar grupo que desviou R$ 224 milhões em contratos com empreiteiras. Após três meses de investigação, O GLOBO mostra neste ambiente especial como funcionou o esquema de Cabral

por Chico Otavio e Daniel Biasetto

Ele já foi um dos mais influentes personagens da história política do Rio de Janeiro. Os eleitores fluminenses lhe deram seis vitórias nas urnas - três para deputado estadual, uma para senador e duas para governador. No auge da carreira, abraçou-se a Luiz Inácio Lula da Silva, Pelé e Eduardo Paes para comemorar a escolha do Rio como sede dos Jogos Olímpicos de 2016. Porém, a queda de um helicóptero e a divulgação de um conjunto de fotos iniciaram uma escalada de revelações que o obrigou a se retirar da cena pública. Agora, dois anos e sete meses depois de deixar o cargo de governador, Cabral, aos 53 anos, preso pela Lava-Jato nesta quinta-feira, em seu apartamento no Leblon , volta à cena como alvo principal da operação denominada "Calicute". A expedição de Pedro Álvares Cabral às Índias marcou a ascensão e queda do navegador no início do século XVI.

Policias federais prendem o ex-governador Sério Cabral em seu apartamento no Leblon - Pablo Jacob / Agência O Globo

Cabral, o ex-governador, é acusado pela Lava-Jato de liderar um grupo que teria cometido os crimes de corrupção, organização criminosa e lavagem de dinheiro. As investigações apuraram um desvio de cerca de R$ 224 milhões com diversas empreiteiras, dos quais R$ 30 milhões somente com a Andrade Gutierrez e a Carioca Engenharia, em obras como a reforma do Maracanã e o Arco Metropoliltano, em troca de aditivos em contratos públicos e incentivos fiscais, que estão na base da atual insolvência financeira do Estado.

Nos últimos três meses O GLOBO conversou com pessoas ligadas a Cabral, visitou diversos endereços do ex-governador e de personagens envolvidos na investigação e buscou documentos que reforçam o esquema apurado pela Lava-Jato. Com a prisão de Cabral, O GLOBO antecipa a publicação deste especial, que revela a proximidade da relação do peemedebista com empreiteiros que mantinham contratos bilionários com o governo do Estado e como isso se reverteu em bens para o ex-governador, agentes públicos e empresários.

'OXIGÊNIO' , O NOVO PIXULECO

Obras do Maracanã sob suspeita - Jorge William / Agência O Globo

Se a Operação Lava-Jato de Curitiba descobriu o "pixuleco", termo usado pelo ex-tesoureiro do PT João Vaccari Neto ao se referir à propina cobrada de empreiteiras, o dinheiro de corrupção no governo Cabral também tinha um vocábulo próprio: "oxigênio". Era assim que o ex-secretário estadual de Obras Hudson Braga (novembro de 2011 a dezembro de 2014) tratava o suborno exigido das empresas nos grandes contratos de obras, de acordo com a delação premiada de executivos das empreiteiras. Cálculos do Ministério Público Federal demonstram que o esquema comandado pelo ex-governador procovou um rombo em projetos executados pela Carioca Engenharia e pela Andrade Gutierrez. De acordo com as delações das duas empresas, 7% do valor total foi convertido em propina e dividido da seguinte forma: 5% para Cabral, 1% para Braga e 1% para conselheiros do Tribunal de Contas do Rio (TCE), responsável pela fiscalização dos contratos. O pagamento de propina era efetuado em espécie. Cada empreiteira tinha um responsável pelo pagamento e cada beneficiado, o seu cobrador.

As investigações coletaram provas de que o dinheiro pago ilegalmente foi, em parte, lavado por empresas criadas pelos próprios favorecidos, usando nomes de amigos e parentes. Outro provável destino foi o cofre de uma transportadora de valores, novo método de camuflar dinheiro de origem ilegal. O esquema bancou, segundo a apuração, uma vida de luxo para os envolvidos, que inclui viagens internacionais, idas a restaurantes sofisticados, compras de joias e uso de lancha e helicóptero em nome de laranjas.

O economista Carlos Emanuel de Carvalho Miranda, o Carlinhos, ex-marido de uma prima de Cabral, e, eventualmente, Luiz Cláudio Bezerra, outro integrante do círculo íntimo do ex-governador, são acusados de atuar como operadores do peemedebista. Toda a negociação entre as empreiteiras e as autoridades era mediada pelo ex-secretário de governo de Cabral, Wilson Carlos, a quem cabia a distribuição da propina, segundo as próprias empreiteiras. Os investigadores suspeitam que parte deste dinheiro era distribuída para deputados estaduais, federais e outros agentes políticos que serão alvos da próxima etapa da investigação.

Sérgio Cabral e sua mulher Adriana Ancelmo durante jantar no restaurante "Luís XV" do Hotel de France, em Mônaco, em 2009 - Reprodução

Outras delações em negociação, como a do ex-diretor da OAS no Rio, Reginaldo Assunção, deverão reforçar os indícios de corrupção do esquema. Também negocia colaboração Fernando Cavendish, ex dono da Delta Construções, cuja revelação de amizade marca o início do declínio de Cabral. Como revelou O GLOBO, Cavendish presenteou a ex-primeira-dama Adriana Ancelmo durante uma viagem a Mônaco com um anel avaliado em R$ 800 mil .

As primeira delações sobre o braço da Lava-Jato no Rio foram feitas por Clóvis Primo e Rogério Numa, executivos da Andrade Gutierrez, no âmbito do inquérito do caso Eletronuclear. Os dois revelaram ao MPF e à Polícia Federal (PF) que os executivos das empreiteiras se reuniram no Palácio Guanabara, sede do governo, para tratar da propina e que houve cobrança nos contratos de grandes obras. O mesmo esquema foi confirmado pelos acionistas da Carioca Engenharia, Ricardo Pernambuco e Ricardo Pernambuco Júnior, em delação ainda não compartilhada pelo MPF do Rio. Agora, em depoimento revelado pelo O GLOBO , Alberto Quintaes, diretor responsável pelo pagamento da propina da Andrade, confirmou que entregava em dinheiro vivo o pagamento ao operador de Cabral, Carlinhos Miranda. O mesmo esquema foi confirmado por outros funcionários da Andrade Gutierrez, Rodolfo Mantuano e Tânia Fontenele.

Como funcionava o esquema

Ex-governador é acusado com outras pessoas de desviar cerca

de R$ 30 milhões em contratos com empreiteiras

Coordenava

todo o esquema

de Cabral

1

Entre 2007 e 2014, o então Governador Sérgio Cabral participou de esquema de vantagens indevidas envolvendo empresas que tinham contratos com o governo estadual.

Wilson Carlos

Governo do Estado

do Rio

Secretário

DE GOVERNO

SÉRGIO

CABRAL

2

Governador

do estado

(2007 a 2014)

Essas empreiteiras pagavam propinas que eram distribuídas por meio de operadores. O dinheiro vinha dos contratos e aditivos de obras.

Fiscalizava

e aprovava

os contratos

TCE

Contratos e

aditivos para OBRAS

Tribunal de

Contas do

Estado

• Reforma do Complexo

do Maracanã

• PAC Favelas

• Arco Metropolitano

Luiz Paulo Reis

Laranja e

sócio de HUdson

Hudson

Braga

Secretário

estadual

de obraS

Andrade

Gutierrez

Empreiteiras

A propina vinda dos

contratos é repassada

aos operadores

Carioca

Engenharia

5%

1%

1%

Propinas

3

Operadores

A propina era dividida entre o Cabral, Hudson Braga e conselheiros do TCE

Operadores

LRG

Agropecuária

Wagner

Jordão

Garcia

José

Orlando

Rabelo

Operadores

sob

investigação

Responsáveis por distribuir

o dinheiro da propina das empreiteiras

R$ 30 milhões

(Carlos Emanuel

de C. Miranda)

Como funcionava

o esquema

Ex-governador é acusado com outras

pessoas de desviar cerca de R$ 30 milhões

em contratos com empreiteiras

Entre 2007 e 2014, o então Governador Sérgio Cabral participou de esquema de vantagens indevidas envolvendo empresas que tinham contratos com o governo estadual.

1

SÉRGIO CABRAL

Governador do estado (2007 a 2014)

Essas empreiteiras pagavam propinas que eram distribuídas por meio de operadores. O dinheiro vinha dos contratos e aditivos de obras.

2

Contratos e aditivos

para OBRAS

• Reforma do Complexo do Maracanã

• PAC Favelas

• Arco Metropolitano

Andrade

Gutierrez

Empreiteiras

A propina vinda dos

contratos é repassada

aos operadores

Carioca

Engenharia

A propina era dividida entre o Cabral, Hudson Braga e conselheiros do TCE

3

Operadores

Responsáveis por distribuir o dinheiro

da propina das empreiteiras

R$ 30 milhões

Operadores

sob

investigação

Wagner

Jordão

Garcia

José

Orlando

Rabelo

Carlos

Emanuel de

C. Miranda

1%

1%

5%

TCE

Tribunal de

Contas do

Estado

Hudson

Braga

Fiscalizava

e aprovava

os contratos

Secretário

estadual

de obraS

Wilson Carlos

Luiz Paulo Reis

Secretário

DE GOVERNO

Laranja e

sócio de HUdson

Coordenava

todo o esquema

de Cabral

SÉRGIO CABRAL

Governador do estado

(2007 a 2014)

CARLINHOS, O OPERADOR

Carlos Emanuel de Carvalho Miranda, o Carlinhos, ex-marido de uma prima de Cabral - Divulgação

O empresário do ramo agropecuário Carlinhos Miranda, alvo de mandado de prisão preventiva da Operação Calicute, tinha papel central no esquema do governo Cabral, segundo as investigações. Ele corria as empresas para cobrar a fatura pelos contratos, aditivos e outros repasses. Recebia o dinheiro e forjava contratos de sua empresa com as empreiteiras para justificar patrimônio.

De acordo com testemunhas, houve pagamentos na então sede da empresa de Carlinhos, a GRALC Consultoria Empresarial, na Rua Jardim Botânico, Zona Sul do Rio. A sede da GRALC, hoje, foi convertida em LRG Agropecuária e transferida para a fazenda de Carlinhos, em Sebollas, distrito de Paraíba do Sul.

A LRG foi usada para "esquentar", via contratos fictícios, a propina de empresas que se relacionavam com o governo Cabral. Com o nome fantasia "Fazenda Três Irmãos", a sofisticada propriedade rural voltada para a criação de "bovinos de leite e caprinos" fica na Estrada Francisco Corval Alonso, em Paraíba do Sul, e foi visitada pelo GLOBO. Somente das concessionárias de veículos dos grupos Eurobarra e Dirija, pertencentes a uma mesma família, os contratos somam R$ 10 milhões. As empresas, além de prestar serviços ao Estado, têm ligação com o PMDB. Em 2014, um galpão da Eurobarra, na Barra da Tijuca, serviu como comitê central da campanha do governador Luiz Fernando Pezão. O coordenador da campanha, Hudson Braga, tinha uma sala no local. As concessionárias, em 2006, doaram cerca de R$ 200 mil para a campanha de Cabral ao governo fluminense.

Fazenda Três Irmãos '' Paraiba do Sul '' propriedade de Carlos Emannuel de Carvalho Miranda, ex-assessor de Sérgio Cabral - Domingos Peixoto / O GLOBO

A LRG também foi contratada pelo grupo Facility, do empresário Arthur Soares, conhecido como o ""Rei Arthur", pela Plarcon Cyrela Empreendimentos e pelo Portobello Resort, em Mangaratiba, onde Cabral tem uma casa.

Outra contratante da LRG foi a Reginaves (Frangos Rica), beneficiada com um total de R$ 60,8 milhões em renúncias do Estado de 2008 a 2010. A mesma empresa contratou também o escritório da ex-primeira-dama Adriana Ancelmo. Juntos, os dois contratos (LRG e Ancelmo Advogados) custaram à empresa, pertencente a Luiz Alexandre Igayara, R$ 2,7 milhões. Igayara recebeu a medalha Tiradentes, comenda oferecida pela Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro (Alerj), proposta por Cabral, então deputado estadual, em 2002.

O economista Carlos Emanuel de Carvalho Miranda, o Carlinhos - Divulgação

Os delatores também relatam a entrega de dinheiro para Luiz Cláudio Bezerra, outro integrante do círculo íntimo de Cabral. Servidor da Turisrio (empresa estadual de turismo), Bezerra foi cedido à Alerj. Em 2012, quando trabalhava como assessor do então presidente da Casa, deputado Paulo Melo (PMDB), ele acompanhou com a mulher a viagem de Cabral e Cavendish à Europa, na qual ficaram claras as relações entre o governador e o empreiteiro. Bezerra, que também já passou pela Casa Civil (secretário Régis Fichtner), aparece em fotos do grupo que reúne o governador, o secretário Sérgio Côrtes e o ex-dono da Delta no episódio que ficou conhecido como "turma dos guardanapos".

O economista Carlos Emanuel de Carvalho Miranda, o Carlinhos, ao lado de Maurício Cabral, irmão mais novo do ex-governador, tomam um chope em um bar da zona sul do Rio - O GLOBO

SÓCIO DE CABRAL - Amigo de adolescência, Carlinhos foi sócio de Cabral na SCF Comunicação. Ele se aproximou da família pela amizade com o irmão de Cabral, Maurício, conhecido como Mauricinho, e acabou se casando com uma prima do ex-governador, Maria Angélica dos Santos Miranda. A relação política começou nos anos 1990, quando Cabral era deputado estadual e Miranda atuava como consultor de orçamento na Alerj.

Em maio de 2004, os dois se tornaram sócios, com Ricardo Luiz Rocha Cota (ex-subsecretário de Comunicação do governo Cabral e ordenador de despesas publicitárias) na SCF que funcionava na casa de Carlinhos, na Lagoa Rodrigo Freitas. Nessa época, Cabral exercia mandato de senador. A empresa foi extinta em 2013.

O nome de Carlinhos apareceu pela primeira vez na Operação Castelo de Areia, em 2009, quando a Polícia Federal identificou Wilson Carlos, então secretário de foverno de Cabral, como possível beneficiário de 5% dos valores repassados à empreiteira Camargo Corrêa, por conta da renovação da concessão do Metrô Rio, em esquema de lavagem organizado pelo suíço naturalizado brasileiro Kurt Paul Pickel.

Políciais federais saem da casa de Carlos Emanuel de Carvalho Miranda, operador de Sérgio Cabral - Custódio Coimbra / Agência O Globo

Nas anotações do doleiro, há registros de pagamento a Carlinhos em nome de Cabral. Ele teria recebido pelo menos R$ 177 mil em espécie a título de compensação de uma dívida do estado com a Camargo Corrêa no valor de R$ 40 milhões, quitada pelo então consórcio Opportrans.

A empreiteira, em contrapartida, encerrou cinco ações judiciais contra o Estado. Em troca, o governo antecipou em dez anos a renovação do contrato da Opportrans, que assumiu o metrô, e ainda o estendeu por mais 20 anos, até 2038.

Posteriormente, a Operação Castelo de Areia foi anulada por por determinação do Superior Tribunal de Justiça (STJ) sob a alegação de que a denúncia sobre a origem da operação havia sido feita de forma anônima.

WILSON CARLOS, O ARQUITETO

Prisão do ex-secretário do governo Sérgio Cabral, Wilson Carlos Cordeiro , em sua casa na Gávea - Gabriel de Paiva / Agência O Globo

Wilson Carlos Cordeiro da Silva de Carvalho aparece nas investigações como o articulador de pagamentos a Cabral. Ele já fora citado pelo menos três vezes antes. Na primeira vez, na Operação Castelo de Areia, foram apurados indícios de pagamento de R$ 843,5 mil a Carvalho, em 2008, pela Camargo Corrêa, fato que estaria relacionado a contratos das obras do metrô do Rio de Janeiro.

A segunda citação foi na Lava-Jato, em 2015, quando o então diretor da Techint, Ricardo Orique Marques, disse à Polícia Federal que, em 2010, teve uma reunião com Wilson Carlos e com Paulo Roberto Costa, ex-diretor da Petrobras, em um quarto do Hotel Ceasar Park. Na ocasião, segundo o diretor da Techint, Wilson Carlos pediu dinheiro para a campanha de Cabral. O pedido teria ocorrido entre janeiro e maio de 2010 como retribuição ao esforço do governo estadual pela implantação do Complexo Petroquímico do Rio de Janeiro (Comperj). Em depoimento à PF, em maio de 2015, Wilson Carlos disse ter conhecido Paulo Roberto Costa em reuniões entre o governo e a Petrobras, mas negou ter estado no hotel junto com o ex-executivo.

O nome de Wilson Carlos foi citado ainda na delação premiada do ex-executivo da Andrade Gutierrez Clóvis Primo, na qual Primo diz que houve um pedido do então secretário de governo para que fosse pago a conselheiros do TCE-RJ, a título de propina, 1% do valor da obra do Maracanã. O depoimento foi revelado pelo GLOBO em junho deste ano .

AMIZADE - Wilson Carlos, de 51 anos, conheceu Cabral nos anos 1980, quando estudaram juntos no Rio. Trabalhou em uma companhia da área de navegação de 1985 a 1994. Entre 1997 e 2003, foi assessor do gabinete de Cabral na Assembleia Legislativa. Em seguida, foi para o Senado, também com o peemedebista. Foi coordenador da campanha do amigo para o governo estadual em 2006. Com a vitória de Cabral, tornou-se secretário. Deixou o cargo em junho de 2010, para ser administrador financeiro da campanha de reeleição de Cabral, então governador, sendo o responsável por atender pessoas e empresas que queriam fazer doações.

Em 2012, foi novamente alvo de polêmica por ter viajado à Ilha de Saint Barths, no Caribe, ao lado do ex-secretário municipal de Urbanismo, Sergio Dias, e de Georges Sadala, ex-dono do serviço Poupa Tempo, a convite do empresário Saulo Wanderley Filho, dono do grupo Cowan, que participa do consórcio do Metrô Rio, conforme revelou o colunista Lauro Jardim.

Depois do pleito e com a vitória do peemedebista, Wilson Carlos voltou ao comando da secretaria, onde ficou até abril de 2014, quando Cabral deixou o governo do Rio para que Pezão pudesse assumir e disputar a reeleição. A mulher de Wilson Carlos, a empresária Mônica Araújo Macedo de Carvalho também foi assessora de Cabral no Senado.

NA PRAIA DE SÃO BRAZ, A CORTE DE CABRAL

Casa de Cabral localizada no condominio Porto Bello, na Praia de São Braz, em Mangaratiba - Pablo Jacob / O Globo

Wilson passa a bola para Sérgio, que a suspende para Benedicto cortar. Sorridentes, jogadores de calção de banho, a maioria sem camisa, disputam mais uma partida na quadra de grama da casa do anfitrião em Mangaratiba. A tradicional pelada de vôlei do então governador do Rio, Sérgio Cabral, simbolizou, no auge da gestão do PMDB no Estado, a proximidade entre o público e o privado. No mesmo time, Cabral trocava passes com o então secretário de Governo, Wilson Carlos, e com o então presidente da Odebrecht Infraestrutura, Benedicto da Silva Júnior, ambos seus vizinhos no condomínio Portobello Resort, às margens da BR-101.

Da posse de Cabral no governo fluminense, em janeiro de 2007, até a passagem do cargo para Luiz Fernando Pezão, em abril de 2014, o Portobello foi ponto de encontro entre gestores públicos e empreiteiros com contratos de obras e de prestação de serviços para o estado. Alguns deles, como Benedicto Júnior e Fernando Cavendish, da Delta Construções, ergueram mansões no condomínio, a 110 quilômetros do Rio. Na medida em que a operação Lava-Jato aporta no Rio, a convivência entre Cabral e seus vizinhos entra no foco das investigações.

Ex-secretários de Cabral ao lado de Cavendish e Georges Sadala - Reprodução

Levantamento feito pelo GLOBO demonstra que 11 pessoas, entre empresários, gestores públicos e políticos ligados ao governo Cabral, compraram ou alugaram casas no Portobello. Na época, a lista era composta por dois secretários estaduais, um municipal, seis empresários, um prefeito e um assessor parlamentar. Procurados, eles garantiram que, nos momentos de lazer, mesmo na presença de Cabral, não misturavam os interesses públicos e privados.

O ex-governador tem casa no Condominio Portobello desde 1997. Inicialmente, o imóvel do ex-governador ficava em frente ao canal que desemboca no mar. Em 2011, mudou-se para outra propriedade localizada no final da "ilha", como é chamada pelos condôminos a praia de São Braz. Porém, só no dia 14 de outubro deste ano esta casa foi registrada em nome de sua mulher, a advogada Adriana Ancelmo, no cartório do 1º Ofício de Mangaratiba, conforme certidão obtida pelo O GLOBO. Antes de averbá-la, Adriana teve o cuidado de retirar Cabral de seu sobrenome, inclusive na inscrição da OAB-RJ, alegando estar divorciada.

Na lista de empresários, foram vizinhos de Cabral, além de Benedicto e Cavendish, Georges Sadala Rihan, o "Gê", então dono do serviço "Poupa Tempo"; e Marco Antônio Luca, dono da Masan, fornecedora de alimentos para o governo estadual. Arthur Cesar de Menezes Soares Filho, um dos maiores prestadores de serviços do governo fluminense desde a gestão Garotinho como dono da Facility, foi outro frequentador regular do condomínio.

Entre os gestores, Cabral dividia a quadra de vôlei e outros momentos de lazer em Mangaratiba com Wilson Carlos, com o médico Sérgio Côrtes, ex-secretário estadual de Saúde, e com Sérgio Dias, ex-secretário municipal de Urbanismo do Rio. Também foram proprietários no Portobello, o ex-prefeito de Itaguai e aliado Carlos Busatto, o Chalinho, e o empresário Carlos Eduardo Ribeiro, ex-assessor da Assembleia Legislativa, que vendeu a casa para mulher de Cabral.

O ex-presidente da Odebrecht, Benenedicto Júnior, observa o casal Adriana Ancelmo e Sérgio Cabral durante festa de confraternização em homenagem ao ex-governador em Paris, pelo recebimento da medalha Legion D Honneur, oferecido pelo governo francês - Divulgação

Benedicto Júnior é um dos principais delatores da Odebrecht. Apesar de já conhecer Cabral quando desempenhava outras funções na empreiteira, ele entrou para o núcleo central das amizades do ex-governador introduzido pelo amigo Sergio Côrtes em 2007, logo após a posse de Cabral. No ano seguinte, a médica Verônica Fernandes Vianna, mulher de Côrtes, tornou-se sócia da mulher de Benedicto Júnior, Ronimar Machado Mendes, na Blume Jóias, em Ipanema.

Meses depois de entrar pela primeira vez na casa de Cabral, Benedicto comprou um terreno no local e iniciou o projeto de construção de uma casa. Vizinhos relataram que, enquanto a casa era erguida, Verônica fazia visitas frequentes para acompanhar o andamento. Quando a mansão ficou pronta, quem apareceu para morar foi Sérgio Côrtes.

Wilson Carlos, velho amigo de Cabral dos tempos de faculdade, é considerado o colaborador mais próximo do ex-governador, ocupando cargos importantes como a chefia de gabinete do então senador entre 2003 a 2006, tesoureiro de campanhas ao governo do Estado até chegar à Secretaria de Governo, em 2007.

O empresário Georges Sadala se somou ao grupo a partir da campanha de 2006, também por meio de Wilson Carlos, e logo ganhou a amizade de Cabral pela maneira leal com que se relacionava com o ex-governador.

Depois que Cabral entrou em declínio e os boatos de que era alvo de investigações começaram a crescer, todos praticamente desapareceram. Cavendish foi o primeiro a se afastar. Atingido por denúncias que o ligaram ao bicheiro Carlinhos Cachoeira, foi praticamente excluído do grupo e vendeu a casa. Wilson Carlos devolveu a sua, que diz ter sido alugada. Os demais deixaram de frenquentar a casa do ex-governador, principalmente as disputadas noite de pizzas e vinhos. Na fase de ouro, um convite para um evento deste era sinal de prestígio.

A COMPRA DA CASA - Segundo o imóvel registrado no cartório de Mangaratiba, a casa custou a Adriana Ancelmo R$ 2 milhões. O preço está baixo do valor de mercado - corretores da região estimam em R$ 8 millhões um imóvel no condomínio com as mesmas carecterísticas: dois pavimentos, átrio, sala, cozinha, dois lavabos, dispensa, mezanino, cinco suítes, dois banheiros, varanda, com área total construída de 462 metros quadrados. O ITBI, no valor de R$ 95,4 mil, foi estipulado com base de cálculo de R$ 4,5 milhões. A propriedade foi vendida pelo casal Carlos Eduardo Ribeiro e Rosa Maria Nahid Ribeiro, empresários do ramo de postos de gasolina. Até 2011, o casal era lotado na Liderança do PMN, do então deputado Alessandro Calazans, na Assembleia Legislativa.

Carlos também foi sócio de postos na Baixada Fluminense com Vander Calazans, irmão de Alessandro, atual prefeito de Nilópolis. A escritura de compra e venda, registrada em 18 de dezembro de 2015 no 15º Ofício de Notas do Rio de Janeiro, informa que a casa foi comprada por Adriana Ancelmo da seguinte forma: R$ 200 mil de sinal; R$ 300 mil divididos em três prestações e mais 30 parcelas mensais, iguais e sucessivas, representadas por notas promissórias, vencendo-se a primeira em 18 de janeiro de 2016. Isso significa que a casa só acabará de ser paga em julho de 2018.

A Praia de São Braz, onde fica o imóvel, faz parte da história da ocupação do Rio de Janeiro. De acordo com os historiadores, em 1619 o governador do Rio de Janeiro, Martim de Sá, mandou vir de Porto Seguro índios tupiniquins já catequizados para, com os jesuítas e seu filho Salvador Corrêa de Sá e Benevides, estabelecer aldeamentos na região.

O objetivo era enfrentar os índios tamoios, que não davam tréguas aos desbravadores, saqueando-lhes as moradias e as lavouras. Mangaratiba era a junção de duas palavras de origem indígena ( “mangara” – ponta da banana e “tiba” – local onde existe abundância ). A ilha volta agora a fazer história, desta vez associada à maior operação de combate à corrupção no país.

No início de outubro, o governador em exercício Francisco Dornelles publicou um decreto tornando de utilidade pública, para fins de desapropriação, uma área de 16,9 milhões de metros quadrados em Mangaratiba, de propriedade do Resort Portobello Ltda. Remanescente da antiga Fazenda Portobello, o terreno fica dentro do Parque Estadual do Cunhambebe e, em 2012, foi avaliado em R$ 7.597.129,24 para fins de indenização, valor que, atualizado, segundo fontes consultadas pelo GLOBO, deve chegar a R$ 30 milhões . Semanas depois que a medida foi revelada pelo GLOBO, Dornelles desistiu.

O proprietário do Portobello Resort, Carlos Borges, é amigo de Cabral e cliente de Adriana Ancelmo e de Carlos Miranda. O empresário pagou à ex-primeira-dama R$ 2,56 milhões em honorários, por serviços prestados para o resort e para o hotel Portobello.

51 vezes a Mangaratiba

Controle de utilização de aeronaves pelo ex-governador do Rio

Costa Verde foi o destino preferido do ex-governador e família até mesmo no meio de semana

Planilhas de voo dispõem da data, horário de partida e destino

Controle de utilização de

aeronaves pelo

ex-governador do Rio

Costa Verde foi o destino preferido do

ex-governador e família até mesmo

no meio de semana

Planilhas de voo

Partidas entre 04/10/2013 e 27/12/2013,

em aeronave PR-GRJ

Dados disponíveis no Portal da Transparência do Governo do Estado do Rio sobre o controle de utilização de aeronaves revelaram que o ex-governador fez, entre agosto de 2013 e abril de 2014, sozinho, na companhia da mulher Adriana Ancelmo, filhos e empregada doméstica, além de assessores e convidados, um total de 51 viagens de helicóptero entre o Rio e Mangaratiba, uma média de 6 voos por mês até entregar o cargo a Luiz Fernando Pezão.

Os voos realizados pelo ex-governador nesse período, em sua maioria, foram feitos a bordo da aeronave pertencente ao governo do estado quase sempre, com decolagem do Heliponto da Lagoa com destino ao município da Costa Verde fluminense.

Levantamento feito pelo GLOBO nas planilhas de voo disponíveis no site do governo mostra que entre os principais motivos da utilização da aeronave está a rubrica "Recomendação Sub-Secretaria Militar Aeronave PR-GRJ", denominação que segundo a Casa Civil zela pela segurança do governador. É também possível saber quem acompanhou o ex-governador nas viagens, com horário de partida e data.

Entre os passageiros que já voaram com o governador tanto a Mangaratiba quanto a outros destinos, estão ex-secretários, deputados, ministros, desembargadores e assessores de Cabral, como Paulo Fernando de Magalhães Pinto, que ficou conhecido por devolver a Fernando Cavendish o anel avaliado em R$ 800 mil presenteado pelo empreiteiro dado de presente à ex-primeira-dama durante uma viagem a Mônaco . Juquinha, cão da raça shitzu, invariavelmente era um dos tripulantes.

O GLOBO solicitou os dados dos anos anteriores da gestão Cabral ao Palácio Guanabara que justificou não tê-los pelo fato de que somente passaram a ser registrados a partir de agosto de 2013, quando foi publicado o decreto 44.310, após o ex-governador ser pressionado por fazer uso do helicóptero oficial para propósitos pessoais. Na época, Cabral alegou fazer as viagens em helicóptero por "questão de segurança".

Informações do Sistema Integrado de Administração Financeira do Estado mostraram que, de 2007 a 2013, as despesas empenhadas pela gestão Cabral com todas as viagens de helicóptero quase dobraram e saltaram de R$ 5 milhões para cerca de R$ 10 milhões.

Em 2013, levantamento do deputado Luiz Paulo (PSDB) mostrou que, na gestão Cabral, a Subsecretaria Militar da Casa Civil comprou da Helicópteros do Brasil S/A (Helibras) três novas aeronaves ao custo de R$ 31,4 milhões, além de firmar cinco contratos para manutenção, fornecimento de peças, locação de componentes, inspeções periódicas e curso de atualização mecânica, no valor total de R$ 22,5 milhões, de 2007 a 2012. No total, Cabral, Pezão e os então secretários e chefes de departamento de destaque passaram a ter à disposição sete helicópteros.

Em janeiro de 2014, o procurador-geral da Justiça do Rio, Marfan Martins Vieira, arquivou a investigação sobre o uso de helicópteros do Estado por Cabral e familiares ao entender que se tratava de motivos de segurança e otimização de tempo.

HUDSON BRAGA, PODER E OSTENTAÇÃO

Hudson Braga, ex-secretário de obras no governo Cabral, saindo preso no carro da PF - Márcia Foletto / Agência O Globo

Hudson Braga, considerado o homem forte da área de obras do governo Cabral, é um dos envolvidos que mais exibe sinais exteriores de riqueza. Certidões obtidas pelo GLOBO em cartórios demonstraram que ele é dono de um edifício comercial em construção em Volta Redonda, de 10 andares, de uma propriedade no Frade e outra na Ponta dos Ubás, em Angra, e de dois postos de gasolina, um deles em nome da mulher, Rosângela.

Segundo as investigações, ele usou empresas criadas em seu nome e em nome de parentes para receber dinheiro por meio de contratos simulados de prestação de serviços.

Os investigadores, que sustentam que Hudson não possui capacidade financeira para tal patrimônio, desconfiam que ele seja também o dono oculto de uma lancha e de um helicóptero. Em mensagem enviada a Hudson, o diretor-presidente da Fly Escola de Aviação, Luís Guilherme Magalhães Andrade, cobra dele R$ 30 mil pela troca das pás do helicóptero PR-CMA. A aeronave, modelo Robinson R66 (um tripulante e quatro passageiros), está registrada em nome da B&A Participações, Projetos e Consultoria. A empresa pertence a Sérgio Benincá, administrador do consórcio Kyocera Soter, responsável pela construção do Arco Metropolitano.

Em julho de 2014, a secretaria estadual de Obras, então comandada por Hudson Braga, contratou o consórcio Kyocera Soter para a elaboração do projeto e fornecimento de postes alimentados por energia solar. De acordo com reportagem do GLOBO, publicada em abril de 2015 , havia pelo menos 265 postes apagados ao longo de 79 quilômetros de vias e acessos do arco. A instalação de 4.277 postes custou ao Estado R$ 96,7 milhões.

A aeronave, modelo Robinson R66, prefixo PR-CMA, e a lancha 'Retcha', de propriedade do sócio de Hudson Braga, Luiz Paulo Reis - Divulgação/Montagem

Hudson também seria dono oculto da lancha "Retcha I", que está em reformas no estaleiro Martécnica, na Marina Verolme, em Angra dos Reis. Mensagem assinada pelo responsável técnico de uma empresa de reparos de embarcações demonstra que o ex-secretário pagou, em abril deste ano cerca de R$ 22 mil à empresa pelo conserto de um dos motores do barco, da marca Scania.

Na Marina Verolme, o barco está registrado em nome de Luiz Paulo Reis, sócio de Hudson e de familiares em três empreendimentos. A "Retcha I" foi comprada em 16 de setembro de 2013 e tem 16,5 metros e, somente para ficar em vaga seca na marina, custa ao dono R$ 6,2 mil mensais.

Os casais Luiz Paulo Reis e Rejane Kozlowski e Rosângela e Hudson Braga no bistrô Casa Antiga, em Volta Redonda, em Piraí - Divulgação

O COMEÇO - Braguinha, como é conhecido na política fluminense, começou a vida pública em Volta Redonda, onde foi secretário municipal de Administração no governo de Antonio Francisco Neto. Chegou ao Rio no governo Garotinho e continuou no governo Cabral, apadrinhado por Pezão. Foi inicialmente subsecretário estadual de Obras, mas assumiu a titularidade da pasta depois de Pezão, então vice-governador, asssumir no segundo mandato de Cabral, em 2014. Em julho do mesmo ano, foi cuidar da campanha de Pezão. Anunciado depois das eleições para o cargo de coordenador de Infraestrutura e Integração Governamental, ele desistiu da função antes de assumir ao perceber que teria menos poder do que desejava. Homem de confiança do governador, queria sob o seu comando o Detran e a Comunicação Social.

Em Volta Redonda, Hudson está construindo hoje o chamado "Maximum Corporate", o edifício comercial de 10 andares, com 156 lojas e salas e 126 vagas de garagem. O imóvel pertence à Sulcon Construções Materiais e Equipamentos, sociedade de Hudson com Luiz Paulo Reis.

Posto de gasolina e prédio em Volta Redonda do ex-secretário de Obras Hudson Braga - Domingos Peixoto/O GLOBO

Ele ainda é dono de um imóvel. A 11ª Vara Federal do Rio de Janeiro tornou os bens de Hudson indisponíveis em dezembro de 2015 por irregularidades na contratação de empresas para a reconstrução de pontes após a tragédia na Região Serrana, em janeiro de 2011.

UM COFRE PEGA FOGO

A transportadora TransExpert antes do incêndio na empresa - Divulgação

Um incêndio misterioso, em junho do ano passado, pode ter transformado em cinzas parte da propina arrecadada pelo esquema alvo da Lava-Jato no Rio. Segundo O GLOBO apurou, pelo menos R$ 4 milhões do empresário Fernando Cavendish estavam guardados no cofre da Trans-Expert Vigilância e Transportes de Valores, na Avenida Cidade Lima, 33, Santo Cristo, quando o compartimento da empresa pegou fogo. Há suspeitas de que outros envolvidos no esquema guardavam dinheiro no local, aparentemente seguro e sem a mesma fiscalização exercida em instituições financeiras tradicionais, como bancos.

Na última semana de setembro deste ano, ao ir ao local, a Polícia Federal encontrou no escritório da empresa duas declarações de renda de Adriana Ancelmo. Na quebra de sigilo do ex-secretário de Obras Hudson Braga, ele perguntou, no início de 2016, a um homem chamado David se podia "passar na empresa". "David" é, provavelmente, David Augusto da Câmara Sampaio, filho de Elizete Augusto da Silva Sampaio, uma das sócias formais da transportadora, e tido como o dono da empresa.

Segundo O GLOBO apurou, os R$ 4 milhões correspondiam ao valor de um imóvel que Cavendish vendera em São Conrado, em 2013, antes que a propriedade pusesse ser alcançada por alguma medida judicial. Como medo de guardá-la em banco, aceitou o conselho de um amigo e levou a quantia em espécie para a Trans-Expert. Apesar de ter como garantia um contrato e um seguro, até hoje não teria recebido o dinheiro de volta.

Detetive, David tem ligações com o mundo político. Foi nomeado em dezembro do ano passado pelo presidente da Alerj, Jorge Picciani, para o gabinete do deputado Zaqueu Teixeira (PDT). Também já trabalhou no gabinete de Cida Diogo (PT), em 2013.

Em 8 de junho do ano passado, a Trans-Expert alegou que o cofre-forte da empresa em Santo Cristo pegou fogo, queimando "uma quantidade incerta de dinheiro", declarou na época à Polícia o coordenador de Segurança da empresa, Carlos Eduardo. Na manutenção da porta de aço, um funcionário imprudente teria deixado o maçarico ligado, o que provocou o fogo. A Federação de Futebol (Ferj), que perdeu R$ 2 milhões, moveu uma ação judicial contra a transportadora. De acordo com o que o advogado da federação Marllus Lito Freire disse à "ESPN", a própria empresa teria informado à Ferj sobre o ocorrido. Ainda segundo ele, no dia, estavam guardados no cofre mais de R$ 130 milhões.

O promotor Marcos Kak pediu a abertura de inquérito na delegacia de São Cristóvão.

A TransExpert, cuja licença de funcionamento foi cassada no início do ano pela Polícia Federal por irregularidade, contribuiu para a campanha de Cabral a governador em 2006, com quatro doações de R$ 6 mil, cada. O dono oficial, Ricardo Cristo, aparece na Operação Miquéias, na PF, como envolvido em fraudes contra os fundos de previdência da área pública.

Segundo o juiz Marcelo Bretas, que determinou a prisão de Sérgio Cabral, durante a referida operação policial, foram apreendidos documentos que aparentam ter algum vínculo com o esquema criminoso."Várias são as relações entre uma possível atividade criminosa através da empresa Trans-Expert e os investigados nestes autos, inclusive Sérgio Cabral e sua esposa Adriana Ancelmo".

Nos tais documentos, há menção à possível guarda de dinheiro, pela empresa Trans-Expert, do investigado Hudson Braga, o que leva o MPF a suspeitar, com total coerência, que “a empresa TRANS-EXPERT, por meio de seu gestor, DAVID, possui atividade suspeita que aponta para uma possível utilização de seus serviços para a lavagem de dinheiro (...)”.

CALICUTE, ASCENSÃO E QUEDA

A viagem de Cabral a Calicute - Reprodução

O nome dado pelo Ministério Público Federal (MPF) e Polícia Federal (PF) à operação que prendeu o ex-governador do Rio Sérgio Cabral e ex-assessores de seu primeiro escalão está relacionado a uma passagem bastante controversa das grandes navegações portuguesas entre os séculos XV e XVI. A expedição a Calicute, comandada pelo capitão-mor Pedro Álvares Cabral, marca a segunda tentativa da Corte Portuguesa - frustada em grande parte - de estabelecer um entreposto comercial nas Índias, menina dos olhos das possessões coloniais europeias por suas riquezas e especiarias.

Depois da mal-sucedida e violenta empreitada de Vasco da Gama ao Oriente em 1498, o Rei Dom Manuel I decide apostar em Cabral para realizar a missão sem sobressaltos. Então com a moral em alta após a "descoberta" do Brasil em abril de 1500, Cabral parte para as Índias no mês seguinte, mas também decepciona sua majestade na longa missão diplomática uma vez que sua frota teria sido um fracasso "cuidadosamente ocultado", repleta de tormentas, naufrágios e batalhas perdidas. Resultado: ele acabou rebaixado de posto, dando argumentos ao Rei Dom Manuel I para passar a próxima missão a Calicute ao seu concorrente, Vasco da Gama, que voltaria às Índias em 1502 com a chamada “Esquadra da Vingança”.

O que parecia ser uma viagem segura a Calicute para implantar uma feitoria, acabou com o retorno antecipado de Cabral a Portugal, uma baixa considerável de navios - ele foi com 13 e voltou com 4 - e a morte de centenas de seus homens, entre eles o célebre escrivão Pero Vaz de Caminha, a quem cabia relatar a pomposa missão, a exemplo do que já havia feito na chegada ao Brasil e que ficou conhecida como a "Carta de Pero Vaz de Caminha", maior registro histórico daquele 22 de abril de 1500.

Empolgado com a passagem bem-sucedida pela Vera Cruz e a cordial recepção dos “bons selvagens” guaranis, Cabral liderou a viagem com 13 embarcações e um pelotão de 1.200 homens treinados e prontos para guerrear.

Durante o trajeto, já na primeira semana de maio daquele ano, diversos imprevistos se sucederam como o registro da grande tormenta enfrentada a caminho do Cabo da Boa Esperança, cujo saldo negativo ficou por conta do naufráfio de quatro navios.

Já em Calicute, as coisas não saíram como planejadas e Cabral se viu obrigado a recuar de sua chegada depois de falhar na aproximação aos muçulmanos e hindus. E, segundo afirmam alguns historiadores, ele já chegou com imposições descabidas, como a expulsão dos árabes da cidade, o que fez os ânimos se acirrarem rapidamente contra os estrangeiros vindos de além-mar.

Três meses depois de aportar em Calicute - sua frota chegou em 13 de setembro de 1500 - e sem ganhar a simpatia dos locais, Cabral se vê às voltas com tramas e armações, e a feitoria que ele estabelece em Calicute é atacada depois de sua frota pôr água abaixo, por engano, uma embarcação aliada do Samorim, representante soberano do estado hindu. É nesse ataque que morre o escrivão Pero Vaz de Caminha. A resposta vinda dos canhões de seus navios é desproporcional e se faz uma grande carnificina.

Ilustração do plano de navegação de Pedro Álvares Cabral para estabelecer um ponto comercial na cidade de Calicute - Reprodução

De mudança desabalada para Cochim, próximo a Calicute, Cabral vê os carregamentos de especiarias caírem a conta-gotas nos navios portugueses. Segundo relatos, isso começou a preocupá-lo, afinal, a frota tinha uma data limite para poder voltar com uma margem mínima de segurança, aproveitando-se das condições climáticas, ventos favoráveis e circunstâncias náuticas, além das temidas tempestades.

Com os navios abarrotados de especiarias, Cabral decide retornar a Lisboa em janeiro de 1501. Depois de cruzar o Índico mais problemas: um dos navios fica encalhado em um banco de areia e sem condições de resgatá-lo precisa ser incendiado. Em 23 de junho daquele ano, o primeiro navio da frota de Cabral aportou na capital portuguesa. Cabral chegou um mês depois em 23 de julho, sendo recebido pelo rei em seu palácio de verão em Santarém. Apesar da recepção, ele é reconhecido entre seus pares mais como responsável por um desastre político e comercial do que como um descobridor de uma rica e promissora terra.

Nesse sentido é que Dom Manuel I impõe a Cabral um comando limitado e supervisionado como condição para voltar às Índias, o que faz o capitão-mor sentir-se desprestigiado e pedir desligamento dando lugar para Vasco da Gama partir na terceira viagem da Coroa a Calicute.

Prejudicada a diplomacia, Portugal é arrastado a uma guerra contra Calicute e reinos muçulmanos do Índico, o que faz aumentar o consumo e reduzir lucros, dando sopa para os ingleses colonizarem a região com maior êxito.

OUTROS LADOS

Procurada pelo GLOBO após sua prisão, a assessoria do ex-governador ainda não se pronunciou. Em nota à Redação, antes de a operação ser deflagrada, a assessoria de Cabral negou que a relação dele com empreiteiros tenha ultrapassado os limites do público e do privado.

Confira a íntegra da nota

" A família do ex-governador Sérgio Cabral jamais pautou suas relações pessoais nem tampouco a convivência em sua residência pelos cargos ocupados por seus amigos. Esclarece, ainda, que em 1997, adquiriu uma propriedade no Condomínio Portobello tendo vendido a mesma em meados de 2011 qdo, então, a ex-primeira dama alugou, naquele mesmo condomínio, um imóvel no lote 84 até a data da sua compra em 2015, possuindo não só o respectivo contrato de locação bem como todos os comprovantes de depósito mensais referentes à mencionada locação ocorrida pelo período de mais de 4 anos. Tão logo realizada a compra a ex-primeira dama declarou-a regularmente em seu imposto de renda, conforme determina a legislação competente. O registro do referido imóvel no RGI só foi possível após pagamento por parte do ex-proprietário de dívidas junto ao Município."

Ao GLOBO, também antes da prisão, o governador Luiz Fernando Pezão disse "não caber a ele comentar a privacidade, como visitas a residências particulares, de quem quer que seja".

Em nota, a Fecomércio RJ afirmou "que não houve nenhuma viagem oficial ou de qualquer outra natureza do seu presidente junto com o ex-governador Sérgio Cabral ao Condomínio Portobello", e que durante o governo Cabral não foi firmado "qualquer contrato de prestação de serviços com o escritório Ancelmo Advogados para instâncias dos Poderes Legislativo, Executivo ou Judiciário estadual".

O empresário Carlos Eduardo Ribeiro, ex-dono da casa de Mangaratiba comprada por Adriana Ancelmo, disse que resolveu vendê-la porque estava doente. Ela garantiu que era ela a nova proprietária depois de concretizar o negócio, embora o casal Sérgio Cabral e Adriana Ancelmo ocupasse o imóvel pelo menos desde 2011.

Ribeiro, que foi assessor parlamentar do ex-deputado Alessandro Calazans, disse que a casa foi construída por ele depois de adquirir o terreno do próprio condomínio, o Portobello Resort. O empresário disse que chegou a ocupar a residência durante um ano, antes de resolver alugá-la quando apareceram os primeiros sintomas de uma doença.

Ele alega que não conhecia os locatários e, posteriormente, proprietários porque toda a transação foi intermediada por corretores. Ribeiro também garantiu que a casa foi vendida pelo preço de mercado:

- Mas, se eu tivesse saúde, não teria saído de lá - contou.

Os demais citados Carlos Borges, Sérgio Côrtes, Wilson Carlos e Benedicto da Silva Júnior não quiseram se manifestar. Georges Sadala e Arthur Soares não foram localizados pela reportagem.