Rio

PF encontra parte de obras de arte que haviam desaparecido da Casa Geyer

Foram localizados 21 de 124 itens sumidos de coleção
O anexo da Casa Geyer, onde os quadros são pendurados no teto Foto: Bárbara Lopes / Agência O Globo
O anexo da Casa Geyer, onde os quadros são pendurados no teto Foto: Bárbara Lopes / Agência O Globo

RIO - Em uma mansão do século XVIII no Cosme Velho, obras de arte adquiridas em leilões e antiquários cobrem até o teto. Deveriam ser 4.255 peças, doadas pelo industrial Paulo Geyer e sua mulher, Maria Cecília, ao Museu Imperial de Petrópolis. Mas alguns espaços vazios na Casa Geyer — que vem sendo preparada para virar um museu — logo denunciam o sumiço de parte da coleção: 124 itens exatamente, entre pinturas, gravuras, livros raros e outros objetos. Ontem, a Polícia Federal recuperou 21 deles. Todos estavam em residências e escritórios de parentes de Paulo e Maria Cecília, ambos já falecidos, no Rio, em São Paulo e em Salvador. O episódio acrescentou mais elementos a uma trama que envolve um testamento surpreendente, disputas por herança e irmãos em pé de guerra, com o protagonismo de um dos sobrenomes mais tradicionais da cidade.

Nessa história, o capítulo sobre o mistério do desaparecimento das obras de arte começou a tomar forma em 1999. Foi quando Paulo e Maria Cecília — que tiveram cinco filhos — decidiram doar o casarão e o acervo reunido ao longo de cerca de 50 anos, que inclui uma importante iconografia brasileira do século XIX. O patriarca, dono do conglomerado petroquímico Unipar e amante das artes, morreu em 2004. A mulher, dez anos mais tarde, depois de ela própria contestar na Justiça a doação de 220 peças que, nas suas palavras, foram postas indevidamente no inventário. Maria Cecília alegou que algumas, de grande valor afetivo, já tinham sido dadas a filhos e netos.

Parte do acervo de obras de arte furtado do Museu Imperial Foto: Divulgação / Polícia Federal
Parte do acervo de obras de arte furtado do Museu Imperial Foto: Divulgação / Polícia Federal

SUSPEITA DE FURTO

Na época em que Maria Cecília decidiu ir à Justiça, os Geyer já estavam divididos. Discordavam sobre o comando de empresas do clã e a partilha de cerca de 50 imóveis, grande parte na Zona Sul. As controvérsias subiram ainda mais de tom com a abertura do testamento da matriarca, que deserdou a filha Joanita e o neto Raphael, acusados por ela de uma “duradoura campanha” contra sua integridade física, psíquica e moral. Enquanto as divergências dentro da família aumentavam, a Coleção Geyer era transferida para o Museu Imperial.

Quando técnicos do Instituto Brasileiro de Museus (Ibram, responsável pelo Imperial, entre outros espaços culturais federais) finalmente receberam as chaves da mansão, em julho de 2014, encontraram o quarto de Maria Cecília revirado e dois cofres arrombados. E, ao compararem o inventário das obras doadas com o que, de fato, acharam no casarão, chegaram à lista das 124 desaparecidas. Foi isso que motivou, ontem, o cumprimento de três mandados de busca e apreensão da PF, expedidos pela 6ª Vara Federal Criminal do Rio, durante a operação batizada de Antiquários.

— Suspeitamos que a subtração das peças tenha ocorrido às vésperas de o Museu Imperial assumir a coleção. Temos indicativos de que foram furtadas, mas ainda precisamos entender por que e como as obras foram parar nas residências e nos escritórios onde as encontramos — disse o delegado Rafael Andreata, chefe da Delegacia de Combate a Crimes contra o Meio Ambiente e Patrimônio Histórico da PF no Rio, que descreveu as condições nas quais estavam os itens até então desaparecidos. — As obras eram expostas em ambientes como se fossem de propriedade dos donos dos imóveis.

Agentes cumprem mandados no Rio, em São Paulo e na Bahia Foto: Divulagção / Polícia Federal
Agentes cumprem mandados no Rio, em São Paulo e na Bahia Foto: Divulagção / Polícia Federal

Segundo ele, entre os 21 itens encontrados, havia pratarias, porcelanas, três livros raros e dois móveis. Oito peças foram achadas em Salvador, sete no Rio e seis em São Paulo. Nenhuma delas, no entanto, pertence à lista das que permanecem em litígio para serem retiradas da Coleção Geyer, de acordo com Rafael Andreata.

Nesse enredo, a polícia não revelou o valor das peças recuperadas, a maioria dos séculos XVIII e XIX, nem os nomes das pessoas que as mantinham em seus imóveis. Mas, de acordo com o delegado da PF, elas serão interrogadas, provavelmente no mês que vem, e, se for comprovado um crime, poderão responder por furto qualificado, com pena de multa e até oito anos de prisão.

FAMÍLIA SE DEFENDE

A família contesta as suspeitas de furto. Em nota, o advogado dos Geyer, Antônio Pitombo, atribuiu a operação de ontem da PF a uma possível “falta de comunicação” entre o Museu Imperial e o Ministério Público Federal do Rio. Segundo ele, todo o acervo dos herdeiros sempre esteve à disposição para análise e confrontação com o inventário da coleção doada.

“A família se mantém à disposição para auxiliar na compreensão dos fatos e pretende tomar providências no sentido de clarificar a natureza, qualidade e titularidade dos objetos, pois os herdeiros sempre se pautaram pela boa-fé na relação com os representantes do Museu Imperial”, afirmou Pitombo.

A única certeza, agora, é de que a história terá outros capítulos. Afinal, a PF promete novos desdobramentos da operação de ontem. Além disso, de acordo com o cadastro de bens desaparecidos do Ibram, continua desconhecido o paradeiro de 103 das 124 obras não encontradas no Cosme Velho.

Entre os itens sumidos estão acessórios de decoração do interior da mansão, 35 livros e 33 pinturas e gravuras de artistas como o alemão Eduard Hildebrant, os ingleses Emeric Essex Vidal e Henry Chamberlain, o italiano Joseph León Righini e o brasileiro Frederico Guilherme Briggs. De Hildebrant, por exemplo, segue desaparecida a pintura “Vista de Botafogo Bay”, do século XIX, feita quando o artista esteve no Brasil para a Exposição Geral de Belas Artes do Rio e recebeu, de Dom Pedro II, o título de Cavaleiro da Ordem da Rosa. Um verdadeiro tesouro perdido, com muitas pistas a serem descobertas.

O imóvel da Casa Geyer, localizado no Cosme Velho Foto: Bárbara Lopes/26-3-2015
O imóvel da Casa Geyer, localizado no Cosme Velho Foto: Bárbara Lopes/26-3-2015

UM ACERVO SINGULAR

A Casa Geyer, que o Museu Imperial de Petrópolis pretende abrir como subunidade no Cosme Velho, abriga um acervo considerado por curadores como um dos mais significativos sobre o Rio e o Brasil do século XIX, com peças também dos séculos XVII e XVIII, avaliadas em mais de R$ 20 milhões. O acervo de 4.255 obras foi, inclusive, tombado em 2014 pelo Conselho Consultivo do Patrimônio Cultural, ligado ao Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan).

A coleção brasiliana (obras de artistas que tiveram o Brasil como tema) abrange 1.120 itens iconográficos, entre gravuras e pinturas, produzidos por nomes de várias nacionalidades. Entre os quadros raríssimos da mansão, estão peças do pintor alemão Johann Rugendas, do italiano Nicolao Facchinetti e do francês Nicolas-Antoine Taunay.

Nos 2.590 livros da coleção, destacam-se registros de viajantes e cronistas que passearam pelo Brasil, sobretudo nos períodos real e imperial. Entre os itens de arte decorativa, há 466 objetos, sendo quase 200 pinhas de cristal e vidro. Uma das peças é uma lanterna de prata que enfeitava a carruagem cerimonial de dom Pedro II, no Brasil Império.

A abertura do novo museu ao público estava programada, inicialmente, para o ano passado. Estavam pendentes questões como a construção de banheiros e de um estacionamento para os visitantes. Segundo o Instituto Brasileiro de Museus (Ibram), as intervenções não ficaram prontas. Agora, a nova previsão é que a instituição seja inaugurada este ano, mas ainda sem data definida.

A possibilidade de o público em geral ter acesso às obras era um desejo do colecionador Paulo Geyer. Nascido em uma família de classe média, ele se casou com Maria Cecília e logo tomou parte nos negócios da família de sua noiva. Ajudou a multiplicar as riquezas do já abastado conglomerado petroquímico Unipar. De 1999 a 2003, durante a elaboração do inventário de sua coleção, ele acompanhava diariamente o trabalho dos funcionários do museu.