Opinião

Politicamente correto patrulha o carnaval

Blocos, escolas e anônimos foliões devem ter liberdade para se expressar. São eles que fazem a alegria de um evento que deverá reunir 5 milhões de pessoas

A irreverência é marca registrada do carnaval carioca. Por isso, soa dissonante o bloco dos que defendem a exclusão de marchinhas como “O teu cabelo não nega", “Cabeleira do Zezé”, “Maria Sapatão", “Índio quer apito" e “Mulata bossa nova", sob o argumento de que são ofensivas e perpetuam preconceitos. A ala dos politicamente corretos quer banir também algumas fantasias, como as de índio e nega maluca, consideradas desrespeitosas. Sobrou até para a purpurina, acusada de provocar danos ao meio ambiente — agora, recomenda-se um tipo de brilho comestível, usado na decoração de bolos e doces.

A cizânia chegou a tal ponto que o Bloco Mulheres Rodadas cogitou cortar de seu repertório o clássico “Tropicália", de Caetano Veloso, pela simples referência à palavra mulata. Mas voltou atrás e acabou mantendo a canção. “Entendemos que o termo não é central na música e não houve qualquer intenção de Caetano de ser racista", justificou Renata Rodrigues, uma das fundadoras do bloco. No entanto, marchinhas como “O teu cabelo não nega" continuam vetadas.

Autor de “Cabeleira do Zezé", “Maria Sapatão" e “Mulata Bossa Nova", João Roberto Kelly critica a patrulha e se diz surpreso com a celeuma criada em torno desses clássicos dos salões: “Na minha opinião, a mulata é o tipo mais representativo da mulher brasileira. Essa polêmica não combina com carnaval".

De fato, o carnaval, desde sua origem nas festas pagãs da Antiguidade, sempre teve espírito libertário, com excessos, transgressões e inversão de papéis. E esse DNA se mantém até hoje, guardadas as regras de convivência em sociedade. Marchinhas com frases de duplo sentido ou politicamente incorretas são uma característica da folia. Importar idiossincrasias de outros países pode acabar dilapidando traços importantes de nossa cultura.

Essa verve transgressora fica patente não só nas letras das marchinhas, mas nos próprios nomes dos blocos: Suvaco do Cristo; Perereka sem dono; Balança meu Catete; É pequeno mas vai crescer, Planta na mente; Pinto Sarado e Rola Preguiçosa são apenas alguns da lista de mais de 400 grupos autorizados pela Riotur a desfilar este ano.

O estilo irreverente está presente ainda nas fantasias. Por isso, não faz sentido querer banir da folia figurinos de nega maluca e índio, duas tradições da festa. O que seria do Cacique de Ramos sem seus índios? E o desfile da Beija-Flor, que este ano terá “Iracema" como enredo?

Blocos, escolas de samba e anônimos foliões devem ter liberdade para se expressar. São eles, com sua espontaneidade, que fazem a alegria de um evento que deverá reunir este ano 5 milhões de pessoas, atraindo 1,1 milhão de visitantes e gerando recursos da ordem de R$ 3 bilhões para a cidade. O carnaval de rua chegou até aqui embalado por algumas das marchinhas que agora estão na berlinda. Patrulhar esse patrimônio carioca é fazer o samba atravessar.