RI DUQUE DE CAXIAS - 02/11/2016 - Acontece na Vila Operaria, em Duque de Caxias, ha dez anos, o que os organizadores chamam de o maior evento voluntario de grafite do mundo. Foto: Daniel Marenco / Agencia O Globo Foto: Daniel Marenco / Agência O Globo

Meeting of Favela, grafite que transforma perspectivas

Pelo décimo ano na favela Vila Operário, em Duque de Caxias, encontro reuniu mais de 700 artistas

por Rafael Galdo / Daniel Marenco

A metamorfose de uma comunidade pobre da Baixada numa imensa galeria de arte a céu aberto. Essa é a transformação que, desde 2006, o Meeting of Favela (MOF) promove na Vila Operária, em Duque de Caxias. Completando dez anos, o evento reuniu mais de 700 artistas no último fim de semana. Durante três dias, a comunidade se movimentou em torno do grafite, da dança de B-boys, do som do hip hop e do olhar de videomakers e fotógrafos. No fim, o resultado foram centenas de paredes e muros cobertos de cor. E também perspectivas renovadas numa área, muitas vezes, estigmatizada pela violência.

- É um evento nos deixa emocionados. Porque mostra que não estamos esquecidos. Durante o ano, é como se a comunidade fosse oca, vazia, carente de serviços públicos e de atenção dos governantes. Quando chega o MOF, o clima muda - diz a moradora Iara de Lima Paulo, de 33 anos, nascida e criada na Vila Operária.

Fama mundial com festa democrática

Os dias de MOF na comunidade promovem a interação entre moradores e artistas - Daniel Marenco / Agência O Globo

Considerado o maior evento de grafite voluntário do mundo, o MOF já ganhou fama bem longe de Caxias. Só este ano, participaram artistas de vários estados do Brasil e de países como Alemanha, França, Espanha, Estados Unidos, Chile, Colômbia, Peru, Equador e Bolívia. Desta vez, tudo clicado pela fotógrafa Martha Cooper, que nos anos 70 e 80 registrou o início do movimento hip hop em Nova York.

O encontro começou a partir de uma ideia dos grafiteiros Kajaman e Carlos Bobi, inspirados no Meeting of Styles (MOS), evento de grafite que tinha nascido alguns anos antes na Alemanha, mas que permitia apenas a participação de artistas convidados. Em Caxias, o plano era fazer diferente: qualquer um que quisesse era bem-vindo. No primeiro MOF, foram cerca de 50 artistas. A comunidade ainda não entendia muito bem o que acontecia, afirmam Kajaman e Bobi. Ao longo dos anos, o jogo virou. A maioria fala com orgulho do evento, que irradia a partir de uma quadra, no alto do morro, por quase todos os becos e ruas da favela.

- É um momento que a favela espera o ano todo, que traz cultura e arte a céu aberto para um local que não tinha muitas perspectivas. O que ocorre aqui é uma reunião de pessoas em que a essência é o grafite. Mistura Cuiabá com Porto Alegre, Chile com Colômbia. Como resposta, a comunidade nos abraçou. Hoje, dizemos que é o maior evento de grafite democrático do planeta - diz Bobi, até hoje, junto com Kajaman, um dos organizadores do MOF.

MOF: maior evento de grafite democrático do mundo

  • Durante o evento na favela Vila Operária, as crianças são as que mais se divertem com as latas de tinta vazias Foto: Daniel Marenco / Agência O Globo

  • O estranhamento das primeiras edições não se faz mais presente, e cenas de integração entre moradores e artistas são frequentes Foto: Daniel Marenco / Agência O Globo

  • Tudo ocorre em volta da quadra de esportes, mas não é difícil caminhar por becos e vielas mais distantes e ver artistas colorindo a favela Foto: Daniel Marenco / Agência O Globo

  • Artistas de todo o Brasil se juntam a alguns estrangeiros para transformar o evento em um dos maiores encontros de arte de rua do planeta Foto: Daniel Marenco / Agência O Globo

  • Batalhas de hip hop e B-boys, fanfarras, peças circenses, shows e bailes aumentam a grade de programação do MOF Foto: Daniel Marenco / Agência O Globo

  • Hoje a favela espera esse dia com grande expectativa e se prepara para ele. Realizada sempre nos últimos meses do ano, com muito calor, a cerveja chegou a faltar em edições passadas Foto: Daniel Marenco / Agência O Globo

  • Moradores gostam tanto dos grafites em seus muros que esperam a data do evento para renovar a pintura Foto: Daniel Marenco / Agência O Globo

  • Como o grafite só acontece com autorização do morador, a integração e o convívio entre artistas e quem é dono do muro é inevitável Foto: Daniel Marenco / Agência O Globo

  • Este ano o evento comemorou dez anos e grafites mais elaborados e mais coloridos são o sinal da evolução dessa arte Foto: Daniel Marenco / Agência O Globo

  • A moradora Suelene Ferreira Santos abriu o portão ao ouvir barulho de pessoas passando, de presente ganhou no muro de sua casa a reprodução da mãe já falecida feita por artistas chilenos Foto: Daniel Marenco / Agência O Globo

  • A arte não vem só colorindo os muros da favela, mas também transformando o jeito como os moradores tratam da própria autoestima. O dia vira uma festa e muitos falam com orgulho do evento acontecer ali Foto: Daniel Marenco / Agência O Globo

Funciona assim: os grafiteiros chegam, batem na porta das casas e do comércio pedindo para pintar. Se tudo certo, o morador pode escolher o que gostaria de ver em sua fachada ou, então, deixar a critério dos artistas. Desse modo, numa esquina surge um painel abstrato, na outra animais, ao lado de palavras, dizeres bíblicos ou até imagens de antigos moradores. Tudo sendo pintado ao mesmo tempo, junto com apresentações artísticas de grupos circenses, de teatro, dança e música.

- Nos últimos anos, o evento já mudou o olhar de muitas pessoas sobre a Vila Operária. Não há lugar como este no Rio, com tanta história. Quando as pessoas estão chegando aqui e começam a ver os muros, não precisam nem perguntar. Sabem que é a Vila Operária pela quantidade de grafite. Aqui é especial - diz o artista Davi Baltar, de Niterói.

Participação dos moradores

Suelene Ferreira Santos pediu para que artistas chilenos homenageassem a mãe dela com grafite - Daniel Marenco / Agência O Globo

No muro da moradora Suelene Ferreira Santos, por exemplo, a imagem que surgiu no fim de semana passado foi de sua mãe, Anastácia. Três grafiteiros chilenos passaram em sua casa indagando se podiam pintar. Ela deixou, desde que fosse uma homenagem à mãe, morta há quatro anos. Acabou emocionada com que viu.

- Esses meninos não têm noção de como me deixaram feliz. Minha mãe foi uma guerreira. Sempre quis homenageá-la com algo assim. A obra deles ficou linda. Nem sei como agradecê-los. Esse grafite nunca mais sai do meu muro - diz Suelene, que abriu as portas para Isac, Juan Pablo, Carlos e Jonas, vindos de Valparaíso.

Justo essa característica do MOF, para a fotógrafa Martha Cooper, que ajuda a torná-lo diferente do que ela já viu pelo mundo.

- Saí daqui vendo algumas similaridades com o movimento do grafite e arte urbana de quando comecei minha carreira, inclusive com muito da velha escola do grafite. Mas também vi algo muito peculiar, numa comunidade que participa do encontro e pode decidir o que vai ser grafitado - diz Martha.

E tem mais uma motivação para sair de onde for para participar do Meeting, afirma o artista Rafael Se7, que todo ano vai de Teresópolis, na Região Serrana, para o MOF:

- O grafite feito aqui pode mudar a vida de uma criança. A arte tem esse poder de transformação. Por isso venho todos os anos.

E a prova disso está nas ruas. Hoje, parte dos artistas do MOF é da própria favela. Assim como tem morador na organização, fotografando, dançando...

A Vila Operária

Favela é vizinha do cemitério do município - Daniel Marenco / Agência O Globo

Com mais de 10 mil moradores atualmente, a ocupação da Vila Operária começou nos anos 1950. Os primeiros habitantes eram, na maioria, trabalhadores que vinham do Nordeste tentar a vida no Rio. Ent re eles estavam ferroviários, rodoviários, funcionários da construção civil... Com a forte presença de operários, no início da ditadura militar, relatam os moradores mais antigos, o lugar se transformou num reduto do Partido Comunista Brasileiro (PCB) em Duque de Caxias.

No fim dos anos 1970, no entanto, começou a sofrer com o mesmo processo de tantas outras comunidades. Com o adensamento da população, os problemas de infraestrutura se agravaram. E, no passo de outras favelas, a Vila Operária também foi ocupada pelo tráfico de drogas.

Ao lado do cemitério da cidade, a comunidade acabou, volta e meia, aparecendo no noticiário policial. Hoje, é a favela mais populosa de Duque de Caxias, segundo números do IBGE. Ao longo das últimas décadas, recebeu melhorias urbanas, como calçamento de ruas e iluminação pública. Mas, embora muitas das famílias sejam de classe média, a Vila Operária ainda tem um Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) abaixo da média do município de Duque de Caxias. Na cidade como um todo, é de 0,711. Na favela, é de 0,679.