Política

As dúvidas sobre a capacidade de o Supremo lidar com o gigantismo das delações

As dúvidas sobre a capacidade de o Supremo lidar com o gigantismo das delações

Com a chegada de 77 colaborações da Odebrecht, o Tribunal recebe nova lista de inquéritos contra autoridades. Dará conta de cuidar de tudo isso?

TALITA FERNANDES
21/02/2017 - 08h01 - Atualizado 21/02/2017 15h35

Na primeira operação que autorizou como ministro do Supremo Tribunal Federal, Luiz Edson Fachin mostrou-se sintonizado com a Polícia Federal. A ação, que teve como alvo um ex-senador da República e pessoas próximas à cúpula do PMDB no Senado, foi bastante costurada entre Supremo e PF. Dois dias antes de os delegados saírem às ruas em três capitais brasileiras, Fachin recebeu em seu gabinete o diretor-geral da PF, Leandro Daiello. O encontro, registrado na agenda do ministro como “visita de cortesia”, selou uma relação amistosa entre ambos. O clima não era diferente entre o antigo relator da Lava Jato, Teori Zavascki, e a PF, mas Fachin mostrou-se menos fechado. O nome da Operação, Leviatã, era um claro recado: a conhecida obra de Thomas Hobbes fala do homem que é “lobo do homem”, sugerindo o nome do senador Edison Lobão, cujo filho, Márcio, foi um dos alvos da PF. Teori chegara até a vetar nomes de operações no Supremo. Fachin aprovou o apelido.

O ministro Luiz Edson Fachin no plenário do supremo.Na primeira ação com ele,o alvo da PF foi o filho do senador Edison Lobão (Foto: ANDRESSA ANHOLETE/AFP)

Com a canetada de Fachin, e os policiais na rua, a manhã da quinta-feira mostrou os tempos turbulentos que aguardam o PMDB. Ainda que os alvos não tenham sido diretamente os altos dirigentes do partido, no mesmo inquérito em que a ação foi deflagrada são investigados os senadores Renan Calheiros, Romero Jucá, Edison Lobão, Valdir Raupp e Jader Barbalho. Todos do PMDB. Se a Operação Leviatã acendeu um alerta, o governo recebeu do mesmo Supremo um certo sinal de alívio: o decano da Corte, o ministro Celso de Mello, decidiu que Moreira Franco continua ministro da Secretaria-Geral de Governo. A decisão se deu após uma guerra de liminares da primeira instância que, em questão de horas, validavam ou derrubavam a nomeação do auxiliar de Temer como ministro, no início do mês. Como Celso negou o pedido apresentado pelo PSOL – que pedia que Moreira Franco fosse impedido de permanecer como ministro – eventuais investigações contra ele permanecem no STF. O partido alegava que a nomeação de Moreira se deu para garantir a ele foro privilegiado, já que é citado mais de 30 vezes nas delações de executivos da Odebrecht. Celso escreveu em seu despacho que a condição de ministro de Estado “não confere qualquer privilégio de ordem pessoal”.

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Diante da iminência da chegada de uma nova avalanche de processos que investigam autoridades no Supremo, com a delação da Odebrecht, reabre-se o debate sobre a necessidade da prerrogativa de foro. O ministro Luís Roberto Barroso, por exemplo, que já defendeu no passado a criação de uma vara em Brasília para cuidar especificamente de processos de autoridades, fez uma nova proposta em um despacho de uma ação penal envolvendo Marcos da Rocha Mendes, suplente na Câmara do ex-­deputado Eduardo Cunha, também do PMDB e já preso em Curitiba. O processo, de relatoria de Barroso, teve várias declinações de competência – quando há mudança de foro – ao passar da condição de prefeito de Cabo Frio para deputado federal por mais de uma vez. É um clássico: ao sabor de eleições ou uma eventual renúncia, o político muda de instância de foro, o que atrasa ainda mais seu processo.

Com base nesse caso, e para acabar com esse sobe e desce, Barroso afirma que a prerrogativa de foro “se tornou uma perversão da Justiça” e acrescenta que as diversas mudanças de Tribunal podem resultar em breve na prescrição da pena do réu. “A movimentação da máquina do STF para julgar o varejo dos casos concretos em matéria penal apenas contribui para o congestionamento do Tribunal, em prejuízo das suas principais atribuições constitucionais”, diz o magistrado no texto. Barroso usa estatísticas do Supremo e propõe que o plenário delibere sobre mudança no sistema. Ele lembra que o julgamento do mensalão ocupou o Tribunal por um ano e meio, num total de 69 sessões. Lembra ainda que a Corte tem hoje 357 inquéritos e 103 ações penais, somando quase 500 ações. “O foro por prerrogativa é causa frequente de impunidade, porque dele resulta maior demora na tramitação dos processos e permite a manipulação da jurisdição do Tribunal”, conclui o ministro. Ele cita ainda que o prazo médio para o recebimento de uma denúncia no STF é de 565 dias, enquanto um juiz de primeiro grau recebe, como regra, em menos de uma semana, explicando que o procedimento é muito mais simples. O juiz Sergio Moro, por exemplo, é dedicado exclusivamente à Lava Jato. Com as argumentações, Barroso propõe que o plenário do Supremo restrinja o julgamento de autoridades apenas para crimes que forem cometidos no cargo em vigência.

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A preocupação de Barroso é das questões mais pertinentes para o sucesso efetivo da Lava Jato. Não basta descobrir casos absurdos de corrupção como foi alcançado até agora, nem comprovar culpas, como em muitos casos: é preciso punir os culpados. Delatores da Odebrecht relatam histórias que envolvem mais de uma centena de políticos – alguns deles aparecem em mais de um episódio de corrupção. Suspeitos e indícios, portanto, não faltam. Assim, centenas de inquéritos terão de ser criados e investigações conduzidas, com depoimentos, busca por mais provas e audiências, até que deságuem em ações penais que, eventualmente, levarão a julgamentos. É o que – quase – todo o Brasil deseja. Contudo, será um trabalho intenso e extenso, que não combina com o ritmo de funcionamento do Supremo, onde os ministros podem se debruçar em um processo durante meses, podem pedir vista sem prazo para retomar o assunto e têm ainda outros milhares de processos, muitos deles relevantes, para examinar.

A necessidade da existência do foro privilegiado foi questionada também pelo relator da Lava Jato. Na semana passada, Fachin disse que “de muito tempo, tenho subscrito uma visão crítica do chamado foro privilegiado por entendê-lo incompatível com o princípio republicano, que é o programa normativo que está na base da Constituição brasileira”, afirmou. O magistrado, contudo, disse que o STF precisa decidir se essa discussão deve se dar no Tribunal ou no Legislativo. “A questão, todavia, que se coloca é saber se essa alteração pode ser feita por uma mudança de interpretação constitucional ou se ela demanda, da parte do Poder Legislativo, uma alteração própria do Poder Legislativo”, completou.

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Os números apontados pelo ministro Barroso dialogam com um levantamento feito pela Fundação Getulio Vargas, por meio do projeto Supremo em Números. De acordo com um relatório do grupo, de 404 ações penais que foram concluídas entre 2011 e março de 2016, 68% prescreveram ou foram repassadas para instâncias inferiores. Por outro lado, apenas 0,74% desses casos geraram condenações. O levantamento mostra ainda que, no caso de inquéritos, o índice de prescrição ou de transferência para instâncias inferiores é de 38,4% e apenas 5,8% resultam em abertura de ações penais. Traduzidos para a prática, os números mostram que, se alguém deve algo à Justiça, tem uma chance muito maior de ficar impune se tiver foro privilegiado. Pode custar mais caro em termos de honorários advocatícios, mas é o caminho historicamente mais seguro e garantido para a impunidade.

Ministros do Supremo reunidos no plenário.O tribunal tem processos demais e não foi planejado para conduzir ações criminais (Foto: ANDRÉ DUSEK/ESTADÃO CONTEÚDO)

Para Ivar Hartmann, coordenador do Supremo em Números, a lentidão se dá, em primeiro lugar, pelo fato de o STF não ser um órgão desenhado para julgar questões penais. “Os ministros que estão lá – a maioria – não têm experiência em matéria penal, enquanto um juiz de primeira instância, por ser de uma vara específica, acaba tendo mais experiência”, afirma. “É um Tribunal pensado para julgar poucas questões constitucionais em um ano e que está com muita matéria penal.” Ele explica ainda que, além de questões estruturais, há um problema na atitude de cada ministro. “Não há um prazo para terminar um processo, para decidir uma liminar, para a providência do relator”, diz. “As ações demoram mais do que precisariam demorar. Quem fiscaliza o trabalho do ministro do Supremo?”

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O Supremo foi pensado como um Tribunal para dirimir questões constitucionais complexas. Mas a dinâmica da Justiça fez desaguar nos 11 gabinetes milhares de ações de todas as áreas. Da mesma forma que o Supremo não é apropriado para processar autoridades, a PGR também não é a instituição apropriada para conduzir as investigações. “A PGR é mais eficiente nesse sentido, mas é impossível que consiga desempenhar o papel da acusação em todos esses inquéritos e ações penais com a mesma qualidade de milhares que promotores de Justiça fariam na primeira instância”, diz Hartmann.

Os dados atuais dão sinais de que, apesar da tormenta que as delações da Odebrecht podem provocar no cenário político e no noticiário, pouco deve afetar, de fato, a conclusão das investigações das mais elevadas autoridades do país. Se levados em conta, os números mostram que as palavras proferidas pelo presidente Michel Temer sobre ministros investigados são inócuas. Em um pronunciamento feito numa tentativa de estancar as críticas de que pretende frear a Lava Jato, Temer afirmou que ministros que forem denunciados serão afastados de seu governo – conservando a prerrogativa do foro privilegiado, claro – e que, se se tornarem réus, serão demitidos. Nada há de dureza ou mudança de postura da parte de Temer. O Supremo leva, em média, dois anos para abrir um inquérito contra uma autoridade. Portanto, nenhum de seus atuais ministros parece correr risco de ser abandonado pelo presidente à dureza da lei neste mandato.








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