• Dolores Orosco.Fotos Gustavo Zylbersztajn. Edição de moda Larissa Lucchese. Produção-executiva Vandeca Zimmermann
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Lea T. usa trench coat Burberry e sandálias Arezzo (Foto: Gustavo Zylbersztajn )

Lea T. usa trench coat Burberry e sandálias Arezzo (Foto: Gustavo Zylbersztajn )

Se uma mulher já é vítima de preconceito, imagine quem precisa lutar para ser reconhecida como mulher?” A frase com que Lea T abriu seu discurso na mais recente campanha contra o machismo encabeçada pela ONU resume todo o sofrimento pelo qual passam as transexuais. No caso dela, filha de Toninho Cerezo, um ídolo do futebol, ambiente notoriamente sexista, a discriminação ganhou notas mais cruéis. Em vários momentos, Lea desejou ser invisível, mesmo quando desfrutava de fama e sucesso como top model.

Escolhida como uma das embaixadoras da campanha He for She, da ONU Mulheres no Brasil, ao lado das atrizes Camila Pitanga, Sheron Menezes e da cantora Preta Gil, a modelo representa uma categoria de mulher invisível para a sociedade que, além de sofrer preconceito no mercado de trabalho, é alvo de desrespeito e deboche.

Dona de uma trajetória única, Lea quer ser uma inspiração para mulheres como ela. Sua história poderia ser uma versão moderna de um conto de fadas. No entanto, em sua fábula particular, o sapatinho não é de cristal e a fada madrinha é o estilista italiano Ricardo Tisci, responsável por transformar a gata borralheira em modelo internacional. Mas isso ocorreu após ela ter enfrentado a rejeição social, a depressão e ter até pensado em suicídio. “Estou mais para bruxa que para princesa. Tenho esse cabelão preto enorme, sou magra demais e me visto com roupa larga”, ironiza Lea, fenômeno do mundo fashion desde 2010, quando se tornou estrela de uma campanha de inverno da Givenchy, a grife francesa comandada por Tisci até o mês passado.

Lea, 35 anos, e o estilista se conheceram quando ela ainda era Leandro, um estudante mineiro da Academia de Belas Artes de Florença, na Itália. Ela tinha deixado para trás, no Brasil, o peso de ser filho de um craque do futebol brasileiro. “Convivi mais com meu pai até os 14 anos, quando ele ainda era casado com minha mãe [a dona de casa mineira Rosa Helena Medeiros, 61] e vivíamos na Itália. Depois, se separaram e ele refez a vida com outra mulher”, conta Lea. “Hoje estamos mais próximos. Descobri que somos muito parecidos. Temos o espírito livre, não nos apegamos a nada nem gostamos de morar no mesmo lugar por muito tempo.”

A modelo diz que o pai nunca a rejeitou e a opção de não usar o sobrenome Cerezo foi para evitar que sua transexualidade fosse transformada em um escândalo midiático. Algo que se mostrou impossível de impedir.

Ao mesmo tempo que se destacava como modelo – além da Givenchy, também fez campanhas da Benetton, da Redken, e entrou para a lista das mulheres que mudaram a moda italiana, da revista Forbes –, Lea sofria com reportagens sensacionalistas e comentários cruéis na internet. “Tudo foi acontecendo em meio ao tratamento hormonal para a cirurgia de redesignação sexual pela qual passei. Quase enlouqueci.”

À Marie Claire, a top fala sobre a operação de mudança de sexo na Tailândia e revela o que pensa sobre o amor. Confira a seguir os principais trechos da entrevista. A íntegra está na nossa edição de março, que já está nas bancas.

AMOR E SEXO
Antes da cirurgia, minhas relações sexuais não eram prazerosas. Só gozei de verdade após me operar. Consegui sozinha, me presenteei com um orgasmo, uns quatro meses depois do período pós-operatório. Fui explorando minha vagina, seguindo os conselhos que recebi dos médicos na Tailândia, e deu certo. Foi maravilhoso, até chorei! Contei aos meus amigos em Milão, eles fizeram festa, me deram calcinhas vermelhas... [risos]. Foi uma palhaçada! Acho que, no fundo, pensavam: ‘Ah, ela vai falar que teve orgasmo só para não admitir que fez uma burrada se operando’. O processo todo foi muito difícil, mas nunca me arrependi. A virgindade, digamos assim, perdi no início do ano passado. Meu parceiro foi um ex-casinho, que é um grande amigo atualmente. Não foi incrível nem romântico, pois era uma situação tensa. Acho que a primeira vez de toda mulher é assim... Tenho uma filosofia sobre sexo, que pode soar careta. Acho que, quando transamos, a energia do parceiro fica em você e a sua, nele. Então, para me entregar a alguém, tenho que admirar essa pessoa. É uma forma de respeito à minha história, ao meu sofrimento para chegar ao corpo que tenho hoje. Foram tantas lágrimas nessa batalha... Nunca tive um namoro longo, nem me apaixonei loucamente. Menos pelo fato de ser uma transexual, mais por ser uma viajante. Morei em vários países, então era um casinho aqui, outro ali. Estou solteira há anos, sigo minha vida feliz sem fazer sexo. Ou fazendo sozinha, afinal, não estou morta!”

A CIRURGIA
Durante as consultas psiquiátricas para obter o laudo que comprovaria minha inadequação sexual, na Itália, a médica ficou encantada comigo. Enquanto as outras trans na sala de espera estavam sempre vestidas de uma maneira superfeminina e bem maquiadas, eu chegava de bermuda, camiseta, cara limpa e o cabelo preso num rabo de cavalo. A psicanalista me perguntou: ‘Como você se vê como mulher?’. Respondi: ‘Desse jeito, como uma mulher comum vive seu dia a dia’. Ela me achou tão interessante que encurtou o processo. Eu já fazia terapia havia alguns anos, mas com essa especialista foi só um. Com o laudo em mãos, fui para a Tailândia, que é referência nesse tipo de procedimento, acompanhada por minha mãe, meus irmãos e uma tia. Meu pai não conseguiu ir porque tinha compromissos importantes no Brasil. Antes de ser encaminhada ao centro cirúrgico, me ofereceram um calmante. Neguei, porque não estava nervosa, mas aliviada.  Para mim, era uma cirurgia de cura! O pós-operatório, sim, foi doloroso. Sofri com o inchaço e a cicatrização. Mas, ao mesmo tempo, a dor era um sinal de que meus nervos estavam lá, que tudo estava funcionando. Passei três meses nesse hospital e fiz várias amigas trans. Eram meninas do mundo inteiro e, quando nos encontrávamos nos corredores, era cada história de vida... Parecia até um filme do [Pedro] Almodóvar.”

Lea T. na capa da edição de março da Marie Claire (Foto: Gustavo Zylbersztajn)

Lea T. na capa da edição de março da Marie Claire (Foto: Gustavo Zylbersztajn)