Política

Revista íntima vexatória ainda é rotina no sistema prisional do país

Considerado pela ONU como cruel e degradante, procedimento resiste a equipamentos

Mulher e filho a caminho da visita no presídio da Papuda, em Brasília
Foto: Jorge William / Agência O Globo
Mulher e filho a caminho da visita no presídio da Papuda, em Brasília Foto: Jorge William / Agência O Globo

BRASÍLIA. O ranger de grades abrindo e fechando traz a atmosfera do local em que uma agente prisional ordena, de forma educada e um pouco impaciente: “Pode tirar a roupa, inclusive a da criança”. A instrução continua: “Agora eu preciso que a senhora agache três vezes em cima desse espelho que está no chão”. Insatisfeita com os movimentos da interlocutora, determina: “Assim não dá pra ver. Abra a vagina com a mão. A senhora vai ter que tossir, fazer força como se estivesse na hora do parto... Pronto, agora é a vez do menino”.

O diálogo, disponível em áudio na internet, faz parte de uma campanha que tenta fazer o ouvinte sentir na pele a rotina da revista íntima imposta a visitantes de presidiários. É fictício, mas se baseia em fatos reais. Diariamente, mulheres, idosas, crianças e homens são obrigados a ficar sem roupa na frente de estranhos, num protocolo comparado por representantes das Nações Unidas a tratamento cruel e degradante, além de ter eficácia questionada em termos de segurança.

CRIMINALIZAÇÃO DE FAMILIARES E ATÉ SENTIMENTO DE VINGANÇA

Aos poucos, o tema deixou de ser apenas uma indignação entre familiares de detentos para ganhar a agenda pública, levando ao menos 11 estados a editar normas vedando ou limitando a chamada revista vexatória. São leis, portarias, instruções contrárias ao desnudamento, agachamento ou toque nas genitálias. Alguns atos são válidos para o estado inteiro, outros abrangem apenas comarcas ou presídios específicos.

Apesar do esforço normativo em âmbito local, com experiências pontuais de sucesso reconhecidas, as revistas vexatórias continuam a ocorrer na maior parte dos presídios do país. É o que diz a Irmã Petra Silvia Pfaller, da Pastoral Carcerária, entidade ligada à Igreja Católica que atua em inspeções e outros trabalhos dentro das prisões brasileiras.

— Por uma questão de falsa sensação de segurança e de criminalização geral de familiares de presos e presas, as revistas vexatórias continuam ocorrendo. Há também por parte de alguns agentes penitenciários uma sensação de vingança, de castigo nesse ato — critica Petra.

Ela diz compreender a alegação dos estados sobre a falta de equipamentos para vistoriar com segurança o corpo das pessoas, tais como escâner corporal (aparelho moderno que faz uma varredura profunda detectando substâncias ou objetos suspeitos) ou detectores de metais. Mas destaca que não se pode usar essa justificativa para submeter milhares de pessoas a um tratamento indigno:

— É preciso investir nesses equipamentos, pois não dá para as pessoas passarem por essa revista, que atinge a dignidade delas. Há, de fato, muitos objetos ilícitos no interior das cadeias, mas é impossível que só os familiares levem esses materiais. Muita coisa entra por ação de corrupção.

De acordo com Petra, Goiânia é um bom exemplo de proibição da revista íntima, mas a regra não é cumprida em todo o estado, embora a portaria com tal determinação seja de 2012. Há relatos de boas práticas também no Espírito Santo e Rio, segundo ela.

SÃO PAULO É MAU EXEMPLO

O exemplo ruim apontado pelas entidades que lutam pelo fim da prática é São Paulo, que responde por mais de um terço da população carcerária do país.

— Tudo que ocorre em São Paulo é muito representativo devido a essa grande quantidade de presos. Hoje, passados mais de dois anos da lei, o que temos no estado é um ou outro estabelecimento que comprou body scanner e, por isso, não faz a revista vexatória — critica a advogada Raquel da Cruz Lima, coordenadora do programa Justiça sem Muros do Instituto Terra, Trabalho e Cidadania (ITTC).

Em nota, a Secretaria de Administração Penitenciária de São Paulo afirma que “o rigor na revista se faz necessário, com o objetivo de evitar a entrada de drogas e celulares nas prisões”, ocultados nos “próprios corpos (partes íntimas)” dos visitantes, mas acrescenta que a prática “não é constrangedora e nem vexatória”. Destaca que, além dos cinco escâneres corporais em funcionamento, abrirá licitação este ano para mais 166 aparelhos. Apesar disso, o órgão assinalou que em “todos os fins de semana ocorre a prisão de visitantes, que tentam introduzir drogas nos presídios”.

Gestores estaduais da área prisional são unânimes em apontar como único motivo para manutenção das revistas íntimas a falta de equipamentos eletrônicos modernos como os escâneres corporais. Desde o fim do ano passado, o governo federal vem liberando recursos do Fundo Penitenciário Nacional (Funpen) para, entre outras coisas, os estados adquirirem o aparelho. Para muitos profissionais da área da segurança, porém, os detectores de metais usados hoje (disponíveis em forma de pórtico, raquete e banqueta), que são mais baratos do que os escâneres, já seriam suficientes para abrir mão do protocolo controverso de revista.

Para o vice-presidente do Conselho Nacional dos Secretários de Estado de Justiça, Cidadania, Direitos Humanos e Administração Penitenciária (Consej), André Cunha, a banqueta é o instrumento mais adequado para substituir a revista com desnudamento. Em forma de cadeira, o detector de metal faz uma varredura nas partes íntimas do visitante que fica sentado no equipamento.

— Sem a banqueta, fica difícil ter um procedimento 100% confiável prescindindo da revista íntima — explica.

Entre os 11 estados com algum tipo de norma conhecida, Ceará, Rio Grande do Sul, Rio de Janeiro, Mato Grosso e Espírito Santo informaram ao GLOBO, por meio de nota, que baniram a prática. Minas informaram que só é feita em casos excepcionais nos quais há “grave suspeita”. Os demais estados foram consultados, mas não retornaram o contato, à exceção de São Paulo, que mantém o procedimento, mas negou que seja vexatório.