A notícia de que o personagem símbolo da Disney, a primeira versão do Mickey Mouse, vai cair em domínio público movimentou as redes e levantou questionamentos. Mas o que significa, de fato, a gigante de entretenimento perder o direito de uso exclusivo do ratinho?
Ao menos por enquanto, não muda muita coisa, segundo especialistas ouvidos pelo Valor. Entenda.
Por que a Disney pode perder o direito exclusivo sobre o Mickey?
Pela legislação de direitos autorais dos Estados Unidos, uma obra deixa de ser alvo de direitos exclusivos após 95 anos de sua criação. É o que vai acontecer em 2024 com a primeira versão do Mickey, criada em 1928 por Walt Disney. O ratinho ficou conhecido pelo público na animação “Steamboat Willie”, um curta-metragem preto e branco.
Ao cair em domínio público, uma obra pode ser utilizada para novas criações sem precisar de autorização do autor ou detentor dos seus direitos. O Winie-the-Pooh, conhecido no Brasil como Ursinho Puff, por exemplo, entrou em domínio público neste ano. A história do ursinho é de autoria do escritor inglês A. A. Milne e é de 1926. No entanto, adaptações da história devem ter como base os livros de Milne e não as características criadas pela Disney em sua versão do personagem e seus amigos. Puff e o Leitão, por exemplo, são dois assassinos no filme de terror “Winnie the Pooh: Blood and Honey”, que ainda não tem data de estreia.
Outro caso célebre é o do detetive Sherlock Holmes, personagem do escritor britânico Arthur Conan Doyle. O detetive e seu amigo Watson foram criados no fim do século 19 já protagonizaram diversas versões de livros, filmes e séries. Até mesmo versões femininas inspiradas no detetive surgiram. Ainda há, no entanto, cerca de 10 histórias que só entrarão em domínio público no ano que vem.
Por anos, a Disney brigou para não perder a exclusividade sobre o Mickey. E conseguiu. A lei norte-americana sobre direitos autorais surgiu em 1909 e previa um prazo de 56 anos de exclusividade para o autor. Na década de 1970, o grupo Disney investiu na proteção desse domínio e, em 1976, o Congresso americano reformou sua legislação aumentando esse prazo para 75 anos. Assim, a partir 2004 essa primeira versão do Mickey estaria em domínio público.
Mas mais uma vez o grupo se movimentou. De acordo com levantamento do canal “Tech Insider”, do site norte-americano “Insider”, a Disney fez doações acima de US$ 4 milhões a políticos entre 1992 e 1998, ano em que um novo projeto de lei foi aprovado e estendeu os direitos a 95 anos. Com a extensão do prazo não só o direito da Disney sobre o Mickey ficou protegido, mas os de outros personagens que também cairiam em domínio público, como o Super-Homem (1938), o Batman (1939), o Perna Longa (1940) e os Jetsons (1962). Agora, porém, nada indica que a Disney deva tentar mais mudanças na lei.
E no Brasil?
A Disney pode perder o direito exclusivo sobre a personagem nos Estados Unidos. Isso, porém, não vai acontecer no Brasil ainda. A regulação sobre direitos autorais varia em cada país, explica Ísis Moretti, especialista em direitos autorais do escritório Kasznar Leonardos. “A proteção é sempre territorial, não é uma matéria universal.”
No caso do Brasil, a lei 9.610/1998 prevê que o direito exclusivo sobre uma obra se encerra a partir do primeiro ano após 70 anos da morte do autor. Aqui, a primeira versão do Mickey só estará em domínio público depois de 2036, já que Walt Disney faleceu em 1966.
Muitas versões
Apenas a primeira versão do Mickey está próxima de se tornar de domínio público, pela lei americana. Mas de 1928 para cá, o ratinho já mudou muito de aparência. Só foi falar a primeira vez em 1929. Depois ganhou cores, a roupa vermelha e as icônicas luvas brancas. Seu rosto e corpo também mudaram ao longo do tempo, como os olhos. E todas essas versões ainda ficarão protegidas por alguns anos.
“O fato do primeiro desenho do Mickey cair em domínio público não significa que o conceito Mickey caiu em domínio público. Cada versão terá um prazo de proteção”, observa Moretti, do escritório Kasznar Leonardos.
São justamente as versões mais recentes que estão mais atreladas à imagem mais popular, aquela que vem à mente das pessoas quando se remete à Disney, lembra Ana Couto, especialista em construção de marca.
Marca x obra
É importante ter em mente, destaca Moretti, que as grandes empresas muitas vezes também registram o desenho como marca. Quando registrado como marca, a proteção é eterna.
O Mickey tem várias marcas registradas atreladas à figura dele, como a luva branca, ou o formato das orelhas. Enquanto a Disney renova o registro das marcas ligadas ao Mickey, elas são da empresa. “Pode impedir que alguém use o Mickey para comercialização de um produto com base em direito marcário ou até com base em direito concorrencial.”
Então, segundo a advogada, o Mickey cair em domínio público significa abrir caminho para obras intelectuais, como a criação de uma história que inclua o personagem.
“Eu vejo um uso mais literário. Por exemplo, um livro de ratinhos pelo mundo em que aparece aquele primeiro Mickey. Agora, o uso comercial, de venda de produtos, já é outro caminho. Não dá, por exemplo, para estampar uma sandália com o primeiro Mickey, porque a associação é direta à Disney.” Esse é um tema, explica, que não é tão simples e que comumente leva a litígios.
A importância do Mickey para a Disney
O Mickey Mouse é uma das principais fontes de receita da Disney. Segundo os relatórios da companhia, ele e sua companheira Minnie estão na lista de personagens que mais contribuíram com o faturamento com licenciamento para produtos de consumo no segundo trimestre do ano fiscal de 2022 (período terminado em abril). O total de receita dos parques, experiências e produtos Disney somou US$ 6,7 bilhões no período, mais que o dobro do ano anterior.
Em 2021, dados da Licensing Global, publicação norte-americana especializada, indicam que a receita no varejo com marcas Disney somou US$ 56 bilhões, liderando com larga vantagem o ranking global de empresas com marcas licenciadas.
“Claramente há uma vantagem competitiva da Disney, porque eles já têm domínio do uso do Mickey há quase 95 anos”, diz Marco Sabino, do conselho consultivo da Associação Brasileira de Licenciamento de Marcas e Personagens (Abral) e sócio da Mannrich e Vasconcelos Advogados.
No Brasil, porém, o ratinho encontra forte concorrência dos personagens da Turma da Mônica, de Maurício de Sousa, e da Galinha Pintadinha, da Bromélia Produções, quando o assunto é licenciamento.
Para Ana Couto, a perda dos direitos exclusivos sobre a primeira versão do Mickey é significativa do ponto de vista de “domínio da narrativa”. “O maior ponto de atenção é toda a filosofia que a Disney criou em torno do Mickey, uma marca muito familiar”, diz ela. Ou seja, o temor é de que o uso do personagem impacte de alguma forma a imagem da Disney.
Ela diz, porém, que a mudança pode jogar a favor da marca em um momento em que todo mundo, no universo digital, também é criador. São os memes ou versões alternativas de histórias criadas pelos fãs, como acontece com o bruxo Harry Potter, por exemplo. “Não é uma resposta dada de que vai cair ou aumentar o valor de ‘equity’. No fundo, oxigena a obra. Manter uma obra tão relevante por quase 100 anos é um super trunfo e [as novas versões] podem ser interessantes para ganhar ainda mais adeptos.”