Exclusivo para Assinantes
Opinião

E se fosse sua filha?

Tentativa de impedir aborto legal de menina é retrato de como são tratados direitos das mulheres

O caso da gravidez da menina de 10  anos, estuprada pelo tio desde os 6, é uma epifania cruel de como são tratados os direitos reprodutivos de meninas e mulheres no Brasil. A força conservadora, neoliberal e religiosa que sustenta esse governo da morte, que nada fez para conter a pandemia que já supera  cem  mil mortos, é a mesma que, na figura macabra de Damares, queria obrigar uma menina de 10  anos a ser mãe, ao tentar impedir o acesso dela ao aborto legal.

Quantas mulheres e meninas foram violentadas nessa epidemia? O isolamento social necessário para a contenção do vírus trouxe efeitos danosos à vida das mulheres, em especial negras e pobres, como o aumento da violência doméstica e das limitações de acesso à saúde da mulher e direitos reprodutivos, num país recordista de feminicídios e líder de mortes maternas por Covid, com 77% das ocorrências do mundo. Além disso, lactantes, gestantes e mães continuam presas no Brasil, mesmo com previsão legal e recomendação do Conselho  Nacional de Justiça  pela prisão domiciliar por conta dos riscos da pandemia.

O caso da menina no Espírito Santo se destaca não só pela gravidade da violência sexual, emocional e pessoal que ela sofreu do tio, mas também pela nova violência a ela imposta quando, mesmo após a autorização judicial, houve a recusa de atendimento no hospital de Vitória,  e o procedimento precisou ser feito em Recife. Chama a atenção nesse caso a urgência da realização de procedimento previsto em lei e já autorizado pelo juiz, por se tratar de uma menina de 10 anos que já estaria com três meses de gravidez, ou seja, o quanto antes  realizado,  mais seguro.

Do ponto de vista jurídico, não há dúvidas, ela foi vítima de estupro de vulnerável, é menor de 14 anos e, portanto, tem direito ao aborto legal (art. 128, II do Código Penal). Contudo, o que tem impedido o cumprimento da lei? Já se sabe que Damares tentou impor a continuidade da gravidez, explorando o caso para fazer sua política antifeminista, violenta e autoritária, ao lado de uma figura pública polêmica que gravou vídeo com mentiras sobre a menina.

Não podemos aceitar que um julgamento moral oportunista dificulte o acesso ao aborto legal e seguro a uma menina violentada, nem que um serviço de saúde se recuse a cumprir uma ordem judicial e normas técnicas de proteção à mulher vítima de violência. Impor a maternidade obrigatória a uma criança é tortura,  e uma gestação aos 10 anos pode matar. Essa criança precisa, sim, de cuidados, mas de cuidados médicos e psicossociais que garantam a intervenção segura e a redução de danos diante da violência gravíssima por ela sofrida. Para que ela possa superar essa violência e ter infância e juventude saudáveis e invioláveis. Forçá-la a ser mãe não pode ser a resposta. E se fosse sua filha?

Luciana Boiteux  é advogada, e Mônica Francisco é deputada estadual (PSOL-RJ)