• André Jorge de Oliveira
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 (Foto: TOMÁS ARTHUZZI)

(Foto: TOMÁS ARTHUZZI)

Durante a realização dos retratos para esta reportagem, houve um momento de tensão no estúdio fotográfico. Após ser fotografada, Diana Gama, pesquisadora do Departamento de Astronomia da USP, esperava seu táxi. Antonio Facciollo Neto, presidente do Sindicato dos Astrólogos do Estado de São Paulo, aguardava o início de sua sessão de fotos. Eles começaram a trocar ideias. O papo fluía bem, até que um ponto polêmico veio à tona.

Astrologia é superstição, metafísica, mas ele insistiu que era ciência”, relembra Gama. É uma questão sensível para Facciollo — que, há mais de 50 anos, defende a ideia de que a astrologia é um estudo científico, sustentado na mecânica celeste e na estatística. Porém, mesmo entre os astrólogos, muitos resistem em chamar o ofício de ciência, preferindo considerá-lo uma área do saber, como a mitologia. Foi o bastante para que o afiado Facciollo, que já participou de dezenas de debates, lançasse algumas provocações.

Ele acusou os astrofísicos de deturparem conceitos astrológicos: “Essa gente não tem humildade para aprender, não respeita o conhecimento dos outros. Eles se acham os donos da sabedoria universal”. Desconfortável, a astrônoma aproveitou a chegada do táxi para encerrar a discussão. “Sempre respeitei diferenças e nunca havia sido desrespeitada por um astrólogo antes.” Se o encontro tivesse acontecido há 400 anos, ele provavelmente teria tomado outros rumos: antes da revolução científica, astronomia e astrologia andavam juntas. Hoje, essas especialidades são como um casal cujo amor escrito nas estrelas acabou em um divórcio incômodo e mal resolvido.

OS ASTROS COMO FINS

Um astrônomo não tem interesse em desvendar supostos mecanismos ocultos que regem objetos distantes e influenciam nossas vidas. Preocupa-se tão somente em coletar dados e fazer descrições para formular teorias sobre o universo. A astronomia é uma ciência porque segue o método científico: utiliza experimentos a fim de reunir evidências verificáveis e interpretá-las segundo a lógica.

É o que Diana Gama faz em sua sala no bloco E do Instituto de Astronomia, Geofísica e Ciências Atmosféricas da USP (IAG-USP). Nas horas vagas, a astrônoma, que pratica boxe e adora Pink Floyd, gosta de relaxar tocando clássicos de Madonna e Bob Marley em ritmo de bossa no ukulele. Em 2012, no entanto, os momentos de descanso se tornaram cada vez mais raros com o início do doutorado. A cientista estudou como sóis nascem em bolhas infravermelhas, criadas quando o vento de estrelas jovens interage com moléculas que reemitem radiação infravermelha.

“São regiões de formação estelar e complexidade química.” Quem acompanhou de perto o processo de produção científica foi o panda de pelúcia Xiong Xiong: batizado por uma colega chinesa, o ursinho é uma lembrança de um intercâmbio que fez em Pequim. Com o título de doutora obtido em julho, a astrônoma avalia opções de pós-doutorado no exterior para avançar na carreira.

Aos 29 anos, a astrônoma Diana Gama é doutora pelo Departamento de Astronomia da USP. Gama respeita quem crê na astrologia, mas classifica a prática como superstição.  (Foto: TOMÁS ARTHUZZI)

Aos 29 anos, a astrônoma Diana Gama é doutora pelo Departamento de Astronomia da USP. Gama respeita quem crê na astrologia, mas classifica a prática como superstição. (Foto: TOMÁS ARTHUZZI)

A comunidade de astrônomos no Brasil é pequena, porém crescente. Marcos Diaz, presidente da Sociedade Astronômica Brasileira (SAB), fala em 850 membros, 80% dos quais estão ativos. “Grande parte se dedica a pesquisas e docência universitária.” Como Gama, muitos preferem cursar física para obter bagagem mais ampla e, depois, se especializar em astrofísica — é obrigatório fazer pós-graduação no exterior ou em uma das 21 instituições que oferecem o curso no Brasil.

“O mercado não é saturado, ainda absorve o doutor em astronomia para trabalhar na área ou em campos correlatos”, diz a astrônoma Duília de Mello, que já trabalhou na NASA e agora mora em Washington, onde acaba de se tornar vice-reitora da Universidade Católica da América. Para chegar lá, teve de fazer pós-graduação no Chile e na Suécia. Uma rotina cheia de compromissos acadêmicos, diferente dos afazeres cotidianos dos colegas astrólogos.

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OSASTROS COMO MEIOS

De terça a quinta-feira, a rua sem saída Stefan Zweig passa a ser um espaço disputado no Rio de Janeiro. Os paralelepípedos incrustados em um morro no bairro das Laranjeiras, zona sul carioca, conduzem clientes e alunos de Claudia Lisboa até a casa espaçosa onde ela mora, faz consultas e dá aulas. Da janela que projeta luz farta na sala forrada de livros vê-se o Pão de Açúcar. “De vez em quando tem jiboia nas árvores”, conta a astróloga, que medita todos os dias quando acorda. Entre um afago e outro nas cadelas Sofia e Menina, faz o café e lê o jornal. Lisboa recebe o primeiro dos cinco clientes diários às 11 horas da manhã.

Carioca, ela teve o primeiro contato com a astrologia em Porto Alegre, enquanto cursava arquitetura na década de 1970. Foi lá também que nasceu uma de suas duas filhas, a atriz Mel Lisboa. Até hoje, a astróloga estima ter feito mais de 50 mil mapas astrais. Neles, usa preceitos astrológicos para investigar como a configuração dos astros no momento do nascimento influencia na personalidade das pessoas.

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Em julho, a astróloga Claudia Lisboa, de 61 anos, publicou seu primeiro livro, um manual de astrologia contemporânea com mais de 600 páginas. Nele, a astróloga faz um passeio pela história de seu ofício e compartilha os conhecimentos que acumulou ao longo dos últimos 40 anos. Lisboa escreve o horóscopo do jornal O Globo, que chama de “pílula espiritual”, um remédio para ser tomado todos os dias.(Foto: Gustavo Miranda / Agência O Globo)

Ao contrário dos astrônomos, que estudam cientificamente os astros, os astrólogos os enxergam como elementos simbólicos que traduzem os ciclos da natureza e representam a influência direta do cosmo em nossas vidas. “Buscamos uma maneira de responder a questões irrespondíveis”, diz Lisboa. “O humano encontrou no céu uma forma de se comunicar, e o céu se reclinou sobre nós, soprando em nossos ouvidos coisas que soubemos compreender.” Como dentistas ou advogados, os astrólogos fazem previsões e análises como profissionais autônomos. “Sempre sustentei minha família só com astrologia, digo que dá para viver com dignidade”, afirma.

Para defender os interesses da categoria e promover a astrologia no Brasil, Antonio Facciollo Neto criou dois órgãos nas décadas de 1970 e 1980, a Associação Brasileira de Astrologia (ABA) e o Sindicato dos Astrólogos do Estado de São Paulo (Saesp). A sede de ambos é um escritório com arquivos empoeirados no centro de São Paulo, próximo ao Theatro Municipal. Nas paredes, pôsteres do Sistema Solar se juntam a certificados e imagens esotéricas. O imóvel é do próprio Facciollo, um pioneiro em sua área no Brasil. Estima-se que existam cerca de 800 astrólogos no país — número curiosamente próximo ao de astrônomos. “De nível mesmo são só uns 200, o que não quer dizer que o resto seja picareta, são principiantes que acabam não fazendo um bom trabalho”, pondera Facciollo.

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Com 77 anos, o astrólogo Antonio Facciollo Neto é um dos pioneiros da astrologia no Brasil e de defender ferrenhamente que ela é uma ciência. Facciollo também é grão-mestre da Grande Loja Maçônica Arquitetos de Aquário (Glada). “Às vezes me ligam perguntando se vendo peixes”, brinca. Autodidata e veterano em debates nos veículos de comunicação, foi iniciado nos estudos astrológicos pelo pai. (Foto: Tomás Arthuzzi)

CASAMENTO E DIVÓRCIO

Foi no segundo milênio antes de Cristo, na Babilônia, que surgiu o que daria origem à astrologia e ao estudo matemático dos astros. Os sacerdotes babilônicos acreditavam que seus deuses se comunicavam por meio de presságios no fígado de ovelhas e no movimento dos planetas. Ao contrário da primeira vertente, a segunda rendeu muitos frutos: religiosos começaram a fazer observações sistemáticas para interpretar melhor os supostos sinais divinos no céu. O conhecimento chegou à Grécia e penetrou na cultura ocidental. “A astrologia se desenvolveu da fusão entre a filosofia natural grega e a improvável adivinhação celeste babilônica”, explica Michael Shank, professor de história da ciência na Universidade do Wisconsin-Madison, nos EUA.

"Estima-se que existam cerca de 800 astrólogos no país — número curiosamente próximo ao de astrônomos"

Baseada em princípios ocultistas, a astrologia está para a astronomia assim como a alquimia está para a química. Era plenamente aceita entre eruditos da Europa medieval e reis costumavam ter seus próprios astrólogos. Médicos acreditavam que a posição da Lua determinava dias bons ou ruins para fazer sangria nos pacientes, e grandes astrônomos, como Galileu e Kepler, faziam horóscopos. Isso só começou a mudar com o nascimento da ciência moderna, no século 17, quando a especialidade foi retirada das academias europeias. “A astrologia certamente não desapareceu e ainda tem significativa audiência popular, mas rapidamente perdeu credibilidade e prestígio”, diz Shank.

E foi assim, com o advento da era da razão, que astrônomos e astrólogos cortaram relações. Diana Gama acredita que o apelo astrológico surge da necessidade de ter uma justificativa para tudo. “É muito mais fácil acreditar que você perdeu seu emprego porque a Lua está no quadrante oeste acima de Saturno no equinócio de primavera do que aceitar a vida como ela é.”

Já para Claudia Lisboa, a astrologia não tem medo de se afirmar como uma forma de resistência ao pensamento racional. “O mundo não deu conta da racionalidade, somos infelizes, ansiosos e angustiados, tentamos explicar tudo e perdemos tempo nessas explicações.”

Foi uma visão parecida que levou o psicoterapeuta Carl Jung, grande teórico dos arquétipos e do inconsciente coletivo, a nutrir um interesse profundo pela simbologia dos astros. “Nas concepções antigas, o homem se via ligado à terra, e o céu, desconhecido, permitia todo tipo de projeções da psique inconsciente”, explica Felipe de Souza, psicólogo graduado na Universidade Federal de Juiz de Fora. Jung dizia que a astrologia representa a soma de todo o conhecimento psicológico da antiguidade. Se estivesse vivo e ficasse sabendo da discussão que Gama e Facciollo tiveram no estúdio fotográfico naquela tarde de agosto, certamente teria adorado convidá-los para uma conversa franca no divã.

 (Foto: TOMÁS ARTHUZZI)

(Foto: TOMÁS ARTHUZZI)

LONGA HISTÓRIA 
Com raízes na Babilônia, astronomia e astrologia só romperam após a revolução científica do século 17

Na Babilônia
No segundo milênio antes de Cristo, sacerdotes babilônicos começaram a estudar o movimento dos astros, acreditando que eram sinais divinos. Foi a origem da astrologia, da astronomia e de todas as ciências que usam a matemática para descrever a natureza.

Na Grécia
O grande astrônomo e matemático da antiguidade, Hiparco, introduz a astronomia babilônica na Grécia no século 2 antes de Cristo. Ali, nasce a astrologia como a conhecemos. Quatro séculos mais tarde, Ptolomeu publica o influente tratado astrológico Tetrabiblos.

No Iraque
O estudo da suposta influência que os astros exercem sobre as coisas da Terra prosperou no Oriente. No ano 762, a cidade de Bagdá foi fundada em uma data determinada por horóscopo — os califas eram grandes incentivadores do conhecimento astrológico.

Na Europa
As duas especialidades andaram de mãos dadas por mais de mil anos na Europa. No meio acadêmico, quem mais promovia a astrologia eram os médicos. No início do século 17, o próprio Galileu fazia horóscopos e previsões para seu patrono, o grão--duque da Toscana.

Na França
O divórcio entre astronomia e astrologia ocorreu em Paris, em 1666: Jean-Baptiste Colbert, ministro do rei Luís XIV, criou a Academia de Ciências. Influenciado pelo heliocentrismo, deixou a astrologia de fora. Outros países católicos aderiram ao descrédito.

Astros e ciência
Orientado pelo método científico, um astrônomo utiliza diferentes instrumentos para coletar dados, descrever a natureza e formular teorias sobre o funcionamento do Universo.

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