No início do século XX, o agricultor Santos Barros escolheu a comunidade isolada do Vale Encantado, no Alto da Boa Vista, Zona Norte do Rio, para se estabelecer no Rio. Quase 120 anos depois seu bisneto Otávio Barros se tornou mestre de obras de uma intervenção que promete acabar com o problema que a favela, como outras centenas, enfrenta: a falta de saneamento. Desde o início deste mês as 27 casas do Vale Encantado, que abrigam cerca de 60 famílias, estão conectadas em um sistema biosustentável, que não utiliza nenhum produto químico para tratar todo o esgoto da favela. A previsão é que, por ano, 15 milhões de litros de esgoto deixem de ser jogados in natura nos rios da região.
O sistema de tratamento é uma adaptação de dois modelos centenários de tratamento de resíduos: um modelo chinês chamado de biodigestor e um jardim flutuante. O esgoto é coletado das residências e é levado a um tanque de concreto em forma de iglu onde passa por dois processos naturais para a limpeza da água. O primeiro é a decomposição dos resíduos por bactérias que são encontradas nos estômagos humanos e de outros animais, como vacas e cavalos. Esses micro-organismos se alimentam da matéria orgânica que está na água com esgoto e como fruto dessa reação liberam gás — que pode ser canalizado e usado em em uma cozinha.
A água já parcialmente limpa, cerca de 50% menos de carga orgânica, passa por um segundo tanque, coberto por plantas que utilizam também os nutrientes em seu desenvolvimento. Atualmente a capacidade de limpeza do sistema está em cerca da metade, pois as bactérias e as plantas, que são o pulmão deste tratamento, ainda estão se desenvolvendo. A projeção é que em poucos meses o local atinja a marca de 90% do esgoto tratado.
— O biodigestor funciona como um estômago, o processo é o mesmo que acontece dentro da gente. Já as plantas que usamos nos sistema são de brejo, que vivem na água. Olhamos para a região as plantas que se estabelecem melhor nas beiras de córrego. O tratamento é a redução de carga orgânica e de nutrientes. Nutrientes são nitrogênio, fósforo e potássio que é muito rico no esgoto e é o que causa a eutrofização das lagoas e as deixa verde, por exemplo. Neste sistema a primeira etapa remove a carga orgânica e o jardim filtrante tira os nutrientes — explica Leonardo Adler, engenheiro ambiental e sanitarista responsável pelo projeto.
A primeira etapa do projeto foi construída em 2015 financiada por um edital da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (Faperj), mas atendia apenas cinco casas da comunidade. Em 2022, após o financiamento das Organizações Viva com Água, Instituo Clima e Sociedade e algumas doações internacionais, foi possível concluir a ligação do sistema de tratamento com todas as edificações. Até a construção o esgoto era corria a céu aberto e era despejado em córregos que deságuam na Lagoa de Marapendi. A partir de agora, após passar pelos tanques a água é levada para um sumidouro no solo que consegue aproveitar o restante dos nutrientes que ainda restam.
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Além do gás, que no Vale Encantado será canalizado para atender duas residências, outro fruto da decomposição feita pelas bactérias é um resíduo sólido que precisa ser removido em um intervalo médio de três ou quatro anos. O sedimento não precisa ser descartado pois, depois de seco, pode ser utilizado como adubo.
— É uma tecnologia interessante e centenária. Conseguimos dimensionar esse projeto para atender até mil pessoas. Em locais mais adensados é preciso calcular se a melhor escolha é tratar o esgoto o mais perto possível de onde ele é gerado ou concentrar em outro lugar — conta Adler, sócio da Taboa Engenharia.
Toda a mão de obra usada na construção do sistema foi de moradores da própria comunidade, liderados por Otávio Barros, que também é presidente da Associação local. Com uma vocação natural de explorar de forma sustentável os recursos da floresta, o tratamento de esgoto pode potencializar o ecoturismo que os moradores buscam fomentar. Desde 2006 foi criada uma cooperativa que recebe grupos para trilhas na região. No prédio que sedia a Associação, há placas solares que conseguem alimentar a edificação também um outro sistema de tratamento de resíduos sólidos, que também produz gás natural para a cozinha.
— A água deságua em cima da cascata. O pessoal perguntava se podiam tomar um banho depois do passeio, mas não podíamos mentir. Outra diferença clara são os mosquitos, que diminuíram bastante desde que canalizamos o esgoto— brinca Otávio, que com orgulho mostra a cor da água que agora corre entre as casas limpa e sem esgoto:
— Somos uma comunidade que não cresceu. Se pegar fotos de 1985 para cá e comparar com outras como Rocinha e Muzema é possível ver a diferença. O último morador novo que recebemos foi há 10 anos — completa.
Muitos moradores também utilizam frutos e verduras da região na alimentação diária, e até para o atendimento aos grupos de turismo. A estrela da comunidade é a jaca, que, nas mãos da cozinheira Rozineida Pereira, 53 anos, se tornou estrela dos pratos. “Jacalhau”, Bobó e chutney são algumas das iguarias locais.
— Aqui na região tem muito chuchu, por exemplo. Mas a gente ia para o meio da floresta pegar por causa do esgoto. Evitava pegar os mais próximos para evitar a poluição. Estamos dentro do Rio de Janeiro, mas ao mesmo tempo longe.