A liquidação do fundo de hedge de criptomoedas da Three Arrows Capital (3AC), determinada ontem por um tribunal das Ilhas Virgens Britânicas, se soma ao colapso da rede TerraUSD/Luna como eventos do ecossistema cripto que provocam alguns questionamentos sobre um possível risco sistêmico. Em paralelo, também traz à tona discussões que perpassam pelos sistemas regulatórios em discussão no mundo - e também no Brasil.
O pedido de liquidação do fundo foi requerido pela plataforma de negociações (exchange) Voyager Digital, após a Three Arrows Capital não quitar um empréstimo de 15.250 bitcoins e mais US$ 350 milhões em USDC, uma stablecoin pareada em dólar, totalizando um calote de mais de US$ 650 milhões.
A insolvência da 3AC é praticamente resultado de uma “tempestade perfeita”: o inverno cripto, que derrubou os preços das criptos, principalmente o bitcoin - que perdeu mais de 50% de seu valor desde janeiro -, o colapso da Terra/Luna e, segundo alguns analistas, a má gestão das operações.
Em maio, o Three Arrows Capital informou que perdeu cerca de US$ 200 milhões com o colapso da Luna, após sofrer uma venda generalizada, quando a stablecoin TerraUSD (UST) não conseguiu manter seu pareamento ao dólar. Em entrevista ao Wall Street Journal, um dos principais executivos do fundo afirmou, na época, que “a situação do Terra/Luna nos pegou muito desprevenidos”.
“O calote da Three Arrows Capital sobre a exchange Voyager Digital vem afetando o mercado cripto com suas possíveis repercussões”, afirma Henrique Teixeira, chefe global de desenvolvimento de negócios do Grupo Ripio. “O caso traz insegurança ao mercado para possíveis liquidações de outros projetos, fazendo com que os preços de todo o mercado cripto desabem e afetem toda economia cripto.”
“O calote recebido pela corretora Voyager num montante tão expressivo (mais de meio bilhão de dólares) certamente trará problemas de liquidez que podem afetar seus compromissos com os demais investidores da plataforma”, aponta Thiago Barbosa Wanderley, sócio da área tributária do Ogawa, Lazzerotti e Baraldi Advogados.
Samir Kerbage, diretor de tecnologia da Hashdex, explica que o risco de insolvência da 3AC envolve basicamente os agentes de mercado que têm exposição ao fundo dentro do mercado de aluguel de criptos. “Grandes operadores, como BlockFi, Celsius, Babel, Voyager podem ter grandes perdas com a falência da 3AC”, afirma. “Estamos vendo a consequência do excesso de alavancagem que há entre esses entes privados que tinham muito risco de contraparte uns com os outros.”
No curto prazo, avalia Kerbage, pode haver uma onda de liquidação de garantias, na qual as contrapartes irão vender seus bitcoins e ethereums - as duas principais criptos utilizadas nesses casos. “Quando as contrapartes executam essas garantias, elas vendem no melhor preço possível, o que gera uma força vendedora muito intensa no mercado e pode resultar em quedas grandes nos preços.”
No entanto, para ele, "a classe de ativos não está comprometida", assim como a falência da bolsa de valores do Rio de Janeiro não desmantelou o mercado de ações. "Vai quebrar quem tiver que quebrar, vai liquidar o que tiver que liquidar, daqui a pouco o mercado volta ao normal."
Regulamentação
Em entrevista à Bloomberg, Ryan Selkis, co-fundador da plataforma de pesquisa e dados de criptomoedas Messari, afirmou que o episódio pode ser bastante negativo ao lobby do setor diante do processo de discussão da regulamentação do mercado cripto nos Estados Unidos, acrescentando que há indícios de que a gestora tinha controles de risco ruins, que colocavam os recursos dos clientes em risco.
Na última semana, a empresa de análise e pesquisas FSInsight divulgou relatório em que avalia que a conduta da Three Arrows Capital pode ser comparada a um “esquema Ponzi no estilo de [Bernard] Madoff”, associando o megainvestidor condenado por pirâmide financeira aos fundadores da 3AC, Su Zhu e Kyle Davies, que teriam usado sua reputação para “pegar emprestado de forma imprudente de quase todos os credores institucionais do meio”, segundo informações do CoinDesk.
“É provável que a dupla estivesse simplesmente usando fundos emprestados para pagar juros sobre empréstimos emitidos por credores, enquanto maquiavam os números para mostrar retornos maciços sobre o capital”, diz o relatório.
Para Wanderley, o caso da 3AC sinaliza “que o mercado já encontra-se aquecido e robusto o suficiente para que sejam criados mecanismos de regulação”. E, nesse contexto, insere as discussões que estão ocorrendo no Brasil a respeito.
“Vemos com bons olhos o caminhar do PL 4401/21, que encontra-se em trâmite na Câmara dos Deputados e, caso aprovado, poderá instaurar mecanismos de proteção aos investidores, obrigando a determinados agentes de mercado, como as corretoras, que demonstrem uma reserva patrimonial capaz de garantir parte de suas obrigações”, aponta o tributarista.
Bernardo Mota, presidente do Instituto de Prevenção e Combate à Lavagem de Dinheiro e ao Financiamento do Terrorismo (IPLD), ressalta ainda que “estamos falando de um mercado absolutamente sem qualquer tipo de controle do ponto de vista normativo”. “O especulador, fraudador ou golpista procurará sempre um mercado menos regulado.”