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Inteligência Artificial na Educação: muito além da mera substituição do caderno por um tablet

Formuladores de políticas precisam se concentrar mais nos professores e menos nas ferramentas tecnológicas em sala de aula

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Dora Kaufman*
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Alunos em aula (Foto: mego-studio - br.freepik.com)

Ao provocar o fechamento temporário de escolas em 180 países, a Covid-19 afetou negativamente cerca de 1,6 bilhão de crianças e jovens (aproximadamente 85% do total de crianças). O World Bank EduTech , área do Banco Mundial dedicada a estimular o desenvolvimento e a adoção de tecnologias educativas, com base em dados do Instituto de Estatística da UNESCO, em 2021 criou o índice “Learning Poverty” (LP) . O índice combina a proporção de crianças em idade primária fora da escola (schooling deprived, SD) e a proporção de crianças abaixo de uma proficiência mínima em leitura (learning deprived, LD). Os resultados encontrados são alarmantes: nos países de baixa e média renda, o índice LP é de 53%, enquanto para os países mais pobres é de 80%; a ser mantida a taxa atual de melhorias, em 2030 cerca de 43% das crianças ainda terão dificuldades de aprendizagem. Para acelerar o processo, o Banco Mundial aposta na personalização do aprendizado com inteligência artificial (IA).

Cristobal Cobo, especialista Sênior em Educação do Banco Mundial, adverte, contudo, que introduzir novas tecnologias na educação requer preparar os professores para usá-las de forma eficaz, mesclando habilidades tecnológicas e pedagógicas . "Adotar novas tecnologias vai muito além da mera substituição do caderno por um tablet. A pandemia mostrou claramente que é importante se afastar da abordagem instrumental (tecnologia como ferramenta) e apostar em políticas que cultivem uma mudança mais profunda apta a transformar o aprendizado dentro e fora da sala de aula”, pondera o educador.

Soluções eficazes precisam ser centradas no professor, para tal os formuladores de políticas precisam conhecer profundamente: a) como os professores percebem e usam a tecnologia e b) qual o contexto e a infraestrutura disponível (conectividade de qualidade, por exemplo, é pré-condição). Para obter avaliações mais precisas, Cobo recomenda os sistemas "Mentoring Technology-Enhanced Pedagogy Self-Avaliation”/MENTEP , “Mydigiskills" , "Digital Competence Wheel” , e "Tests Pix” .

O MENTEP, por exemplo, é um projeto financiado pela Agência Executiva de Educação, Audiovisual e Cultura da União Europeia, envolvendo 16 parceiros, entre eles os ministérios da educação do Chipre, Portugal e Espanha, e 9 agências nacionais e/ou institutos de investigação em educação da Finlândia, Itália, Lituânia, Dinamarca, Eslovénia, Chipre, Noruega, República Checa e França.

Compreender e refletir sobre os avanços da IA na educação tem sido objeto de diversos documentos mundo afora, entre eles o lançado em 2020 pelo Programa Erasmus+ da Comissão Europeia intitulado “Artificial Intelligence in Teaching (AIT): A roadmap for future develpments”. Alertando que a IA está rapidamente se tornando onipresente no ensino superior, com impacto que precisa urgentemente ser compreendido, os autores situam três aspectos a serem considerados na interface entre a IA e a educação: a) aprendizagem com IA (sistemas educativos com IA); b) aprendizagem sobre a IA (compreender o funcionamento e o foco na educação profissional pelos desenvolvedores de IA); e c) aprendizagem para a IA (compreender os impactos éticos da IA na sociedade). O documento cita algumas experiências, como do Reino Unido: Ada, chatbot do Bolton College .

Em 2018, os educadores Sir Anthony Seldon, Priya Lakhani OBE e Rose Luckin conceberam o "Institute for Ethical AI in Education” (IEAIED) com o objetivo de, no prazo de 2,5 anos, propor uma estrutura ética que permitiria a todos os alunos se beneficiarem de forma otimizada da IA , e ao mesmo tempo protegê-los contra os seus potenciais riscos. O projeto foi financiado pela McGraw Hill, Microsoft Corporation, Nord Anglia Education, Pearson PLC, e doação discricionária de John Fairbairn da Esmee Fairbairn Foundation. Em fevereiro de 2020, o Instituto publicou o primeiro Relatório, "Towards a Shared Vision of Ethical Al in Education", contemplando uma visão geral das aplicações da IA na educação, incluindo riscos e benefícios, e um plano para um quadro ético.

Entre março - julho/2020, o Instituto efetuou uma ampla consulta à diversas partes interessadas - formuladores de políticas, acadêmicos, filósofos e especialistas em ética, educadores - do Reino Unido e dos EUA e, em número menor, especialistas da África, Ásia, Austrália e América do Sul. A partir dessas entrevistas, em setembro de 2020, o Instituto publicou o segundo relatório, que foi debatido, entre outubro e dezembro, em oito mesas redondas (três delas com participação de jovens). Em novembro, o evento “Cúpula Global sobre a Ética da IA na Educação”, com a participação de mais de 200 especialistas e autoridades de governo, propôs o "Quadro Ético para IA na Educação” (Ethical Framework for AI in Education) com princípios e metas a serem observadas, enfatizando a importância dos desenvolvedores/fornecedores de tecnologia envolverem as partes interessadas no processo de design dos sistemas .

Ao longo da década de 1990 e primeiros anos da década de 2000, o bordão "aprender a programar”, como a nova alfabetização, tomou conta da pauta educacional. À época, acreditava-se que aprender a linguagem de programação seria garantia de letramento digital e, igualmente, de futuro promissor no mundo do trabalho. A inteligência artificial requer agregar ao “aprender a programar” (que continua relevante, dada a ainda forte presença dos sistemas programáveis), aprender sobre seus fundamentos e lógica e as implicações éticas e sociais.

Em seu último livro, “AI 2041: Ten Visions for Our Future”, 2021, Kai-Fu Lee defende que a IA, ao assumir parte das tarefas do professor, tem o potencial de reduzir custos básicos favorecendo a acessibilidade ao ensino de qualidade de um contingente maior de crianças e jovens. Segundo Lee, as experiências de sistemas virtuais de educação na China têm mostrado um aumento significativo de engajamento e aproveitamento dos alunos, preservando a função do professor de estimular o pensamento crítico, a criatividade, a empatia e o trabalho em equipe, ou seja, permite ao professor "se concentrar menos nos aspectos mecânicos da transmissão de conhecimento e mais na construção de inteligência emocional, criatividade, caráter, valores e resiliência nos alunos”, pondera Lee.

No livro “A religação dos saberes: o desafio do século XXI” (2001), Edgar Morin já ponderava sobre a premência de romper com a arraigada visão da tecnologia na educação como mera “ferramenta” de ensino. Em 2020, na obra que celebrou seu centenário, “Conhecimento, ignorância e mistério”, Morin alerta que “o sonho de uma sociedade humana totalmente automatizada sob a lei do algoritmo não levaria ao super-humano, mas ao desumano”.

*Dora Kaufman é professora do TIDD PUC - SP, pós-doutora COPPE-UFRJ e TIDD PUC-SP, doutora ECA-USP com período na Université Paris – Sorbonne IV. Autora dos livros “O Despertar de Gulliver: os desafios das empresas nas redes digitais”, e “A inteligência artificial irá suplantar a inteligência humana?”.

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