Mesmo com notas baixíssimas no MEC, faculdades de pedagogia caçam alunos com mensalidades abaixo de R$ 200

Controle de qualidade desses cursos, que formam os professores da educação infantil e do ensino fundamental 1, é falho, segundo especialistas. Expansão do ensino à distância (que já ultrapassa o presencial em número de alunos) traz preocupação adicional.

Por Luiza Tenente, g1


Fachada da Unisan, em São Paulo — Foto: Reprodução

"Aproveite! Campanha especial! Faça sua matrícula e garanta mensalidades fixas de R$ 180!”, anunciam as propagandas da Faculdade Álvares de Azevedo (FAATESP), instituição privada de São Paulo que busca alunos para a graduação presencial em pedagogia.

“Vou conversar com o diretor e tentar te incluir nesta promoção. Você pode fazer o vestibular em casa e aí passar [as respostas] para a folha oficial aqui na faculdade”, explicou a atendente, por mensagem de voz, quando a repórter pediu informações (sem se identificar).

Em 2017, última vez em que o Ministério da Educação (MEC) avaliou esse curso, foi atribuído a ele o conceito 2 de qualidade – considerado insatisfatório.

Também em São Paulo, os estudantes que quiserem se tornar professores de crianças podem prestar pedagogia na Unisan - Centro Universitário.

Em apenas 3 anos, com aulas à distância, é possível obter o diploma e, em mais 6 meses, receber o título de pós-graduado em psicopedagogia. Tudo isso com mensalidades de R$ 98. A avaliação pelo MEC? Conceito Preliminar de Curso (CPC) 2. Insatisfatório, portanto.

“É só a senhora fazer uma redação [para entrar na faculdade]. Mas o resultado dela não te impede de fazer a matrícula”, explica a atendente.

Os dois cursos acima listados estão entre os cerca de 90 que receberam notas baixas no último CPC e que continuam em atividade. Neles, serão formados profissionais que atuarão na educação infantil e no ensino fundamental 1 – ou seja, que ensinarão os alunos a ler e a escrever nos próximos anos e que serão responsáveis pelo primeiro contato das turmas com a matemática, por exemplo.

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Após índices tão ruins, a FAATESP e a Unisan deveriam ter recebido uma segunda avaliação (Conceito de Curso - CC), a partir de uma visita presencial do MEC. Se os desempenhos continuassem insatisfatórios, as graduações seriam descredenciadas. No sistema e-MEC, no entanto, o campo no qual deveria ser informado esse novo índice está em branco. Nem o ministério, nem as instituições de ensino responderam ao g1 se houve a tal visita, mesmo após serem procuradas por e-mail e telefone, ao longo de mais de uma semana.

O que está acontecendo com a formação dos pedagogos é um escândalo, define Ivan Gontijo, coordenador de políticas educacionais da ONG Todos Pela Educação. Segundo ele e outros especialistas ouvidos pela reportagem, a crise é desencadeada pelos seguintes fatores:

  • crescimento desenfreado de cursos com aulas à distância, com a maioria dos alunos em EAD, em uma graduação que exigiria mais prática e contato presencial em sala;
  • aulas extremamente teóricas, que não preparam os profissionais para a realidade das escolas;
  • mecanismos de avaliação de qualidade do MEC falhos, somados à falta de regulação na abertura/fechamento de cursos;
  • preponderância de uma lógica mercantil, em que mensalidades baixas, promoções e ligações de televendas para angariar mais alunos sobrepõem-se à preocupação com a qualidade acadêmica.

Entenda abaixo:

'Não tinha noção do que fazer': cursos de pedagogia com muita teoria e pouca prática

“Quando comecei a ser professora, não tinha noção do que fazer. Aprendi sozinha, na prática, a preparar os planos de aula. Sinto que, se não tivesse feito faculdade [de pedagogia], conseguiria fazer o mesmo que faço hoje”, diz Paloma Ottwil, formada em uma instituição privada do Recife. Ela dá aulas particulares a crianças e jovens, enquanto procura uma vaga fixa em algum colégio.

Segundo Gontijo, os currículos do curso de pedagogia precisariam ser repensados: há uma carga grande de teoria, sem atividades e reflexões que de fato preparem o futuro docente para a realidade das escolas.

“Tanto os cursos presenciais quanto os à distância são muito teóricos. O estudante lê sobre os grandes pensadores da educação e tem aulas expositivas, mas, em geral, com poucas oportunidades de estágios supervisionados de qualidade e raras discussões de casos reais”, afirma.

“A universidade está cada vez com menos diálogo com a realidade, justamente em uma profissão que é essencialmente prática.”

O novo regulamento do curso de pedagogia, aprovado em 2019, reconhece que a formação de professores está associada à prática, que “precisa ir muito além do momento de estágio obrigatório, devendo estar presente, desde o início do curso, tanto nos conteúdos educacionais e pedagógicos quanto nos específicos".

“É um documento bom, mas que precisa chegar às universidades com apoio técnico e financeiro”, diz Gontijo.

Paloma, por exemplo, conta que um de seus estágios, em gestão escolar, não serviu para praticamente nada.

“Eu ficava na direção, observando o trabalho dos outros, para depois pensar em resolver alguma dificuldade da escola. Mas ficava totalmente escanteada lá, sem orientação, diz.

Uma das iniciativas eficazes para dar mais experiência aos estudantes é o Pibid, programa que oferece bolsas de iniciação à docência aos alunos de cursos presenciais. Mas ele tem sido enxugado nos últimos anos.

Um levantamento do Todos Pela Educação, com base em relatórios da gestão Capes, mostra que, em 2016, eram 89.905 alunos beneficiados. Em 2020, foram 29.856 – redução de 67%.

Ao g1, a Capes afirmou que, em 2018, foi criado um segundo programa voltado aos estudantes de licenciatura: o "Residência Pedagógica".

"Somados a outros três programas destinados a formação de atuais e futuros professores da educação básica (UAB [focado em EAD], Parfor e Proeb [para pós-graduação]), a CAPES concede mais de cem mil bolsas em cursos de graduação e pós-graduação lato e stricto sensu", afirma, em nota.

O relatório do Todos Pela Educação mostra que, somando o Pibid e o "Residência Pedagógica", foram 64.324 bolsas em 2020. Em 2018, era quase o dobro disto: 132.932 vagas.

Nas faculdades privadas, 80% dos alunos de pedagogia estão em EAD

Danilo é professor de matemática e se formou em pedagogia — Foto: Arquivo pessoal

Danilo Henrique já era professor de matemática quando, em 2016, começou a estudar pedagogia em uma universidade particular de São Paulo, no formato semipresencial (aulas on-line, com encontros na instituição apenas aos sábados, a cada 15 dias).

“Tive dificuldade de achar um curso 100% presencial. Pesquisava esses nomes de faculdades que saem na mídia e só encontrava EAD”, afirma.

De fato, houve uma elevação significativa no número de graduações de pedagogia à distância, como mostra o Censo da Educação Superior, do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep):

Número de cursos de pedagogia EAD mais do que triplicou em 10 anos — Foto: Arte/g1

Como uma sala de ensino à distância pode ter um número muito mais alto de alunos do que uma turma física, os índices de matriculados são ainda mais alarmantes, como mostra o gráfico abaixo. Nas faculdades privadas, a proporção de estudantes de pedagogia no formato EAD é de 80%.

Maior parte dos estudantes de pedagogia está em EAD, mostra o Censo — Foto: Arte: g1

“O MEC libera a abertura dos cursos EAD, que são mais baratos. É uma proposta interessante para quem precisa conciliar faculdade e trabalho, mas a regulamentação é muito frágil”, afirma Gontijo, do Todos Pela Educação.

“Nos cursos à distância, a faculdade monta o material uma vez só e vende depois. Não precisa contratar mais professores ou liberar mais salas.”

O problema é que, segundo o especialista, o mais rentável pode trazer um impacto significativo na formação de quem alfabetizará as crianças futuramente.

Segundo um relatório do Inep de 2017, formulado a partir das notas mais recentes do Exame Nacional de Desempenho dos Estudantes (Enade), os egressos dos cursos de pedagogia da EAD tiveram um desempenho pior em relação aos da modalidade presencial: 40,5 pontos x 44,4 pontos, respectivamente. "É uma diferença estatisticamente significativa", afirma o texto.

“A gente não admite médico ou piloto de avião que seja formado em EAD. Por que pedagogos, tão estratégicos para o Brasil, podem se formar à distância? Isso é um escândalo. Eles precisam se preparar para a vivência na própria sala de aula, com experiência prática”, complementa Gontijo.

Danilo conta que, nos raros encontros presenciais com a turma de pedagogia, era procurado por colegas curiosos. “Eles sabiam que eu já dava aula de matemática, então me perguntavam como era o dia a dia de uma escola. Ali, percebi como essa vivência é importante para um profissional em início de carreira. Na EAD, é tudo basicamente em fórum on-line.”

Segundo Raquel Lazzari Barbosa, do departamento de estudos linguísticos, literários e da educação da Universidade Estadual Paulista (Unesp) de Assis, "o ensino presencial é muito importante na pedagogia, porque muda significativamente a qualidade da formação dos professores".

"Não podemos negar que muitas pessoas que não conseguiriam fazer faculdade estão estudando por causa da EAD. Só que precisaríamos de mais investimentos e fiscalização. Abrem-se cursos de monte, e as avaliações [pelas quais eles passam] estão descontextualizadas", afirma.

Luiz Aguilar, professor titular da Faculdade de Educação da Unicamp, concorda:

"É um grave problema, porque os cursos estão bombando em termos de demanda, mas os currículos não são objeto de análise ou de preocupação. O que essas pessoas estão aprendendo? As redes municipais e estaduais vão sentir, daqui a alguns anos, o impacto de receberem docentes menos preparados", diz.

Pela resolução do Conselho Nacional de Educação (CNE), de 2019, das 3.200 horas do curso à distância, fora o estágio, 400 horas devem ser de prática pedagógica presencial (em um cálculo geral, seria por volta de uma manhã a cada 15 dias, por exemplo).

Cursos 5 estrelas: classificação do MEC é garantia de qualidade?

Em anúncios nas redes sociais ou em banners espalhados pela cidade, instituições de ensino definem seus cursos como “cinco estrelas na avaliação do MEC”. Dá para confiar nessa classificação?

Ela é feita, em geral, a partir do Conceito Preliminar de Curso (CPC), índice considerado frágil por especialistas. Ele leva em conta, a cada três anos:

  • o desempenho dos alunos no Enade;
  • a qualificação do corpo docente;
  • os recursos didático-pedagógicos (como laboratórios).

A nota vai de 1 a 5. Se um curso tirar 1 ou 2 (desempenhos insatisfatórios), deverá receber uma visita presencial de representantes do MEC, para que uma nova avaliação seja feita, de forma definitiva (que leva ao Conceito de Curso - CC). Quando, mesmo depois desta segunda chance, a nota continua baixa, o curso é descredenciado.

Nos dois exemplos citados no início da reportagem, não houve divulgação do conceito definitivo, e os cursos continuam em funcionamento. O g1 entrou em contato com o MEC e com as próprias faculdades para entender se não houve a visita presencial e por que o CC não foi divulgado, mas não obteve resposta até a última atualização desta reportagem.

E não é só a falta de fiscalização e de transparência que são alvos de críticas no CPC. Mesmo as graduações que recebem nota 3, 4 ou 5 não necessariamente têm qualidade atestada.

Em 2019, o relatório “Repensando a Garantia da Qualidade do Ensino Superior”, produzido pela OCDE, elencou os motivos disso:

  • o índice dá um peso grande para o Enade, que é uma prova apenas teórica e pouco eficaz para critérios de comparação;
  • faltam aspectos importantes no cálculo do conceito, como empregabilidade dos formados e taxas de evasão dos alunos ao longo do curso;
  • não há mecanismos de avaliação específicos para EAD.

“Precisa afinar a ponta do lápis nessas avaliações de qualidade. Não dá para dizer que são confiáveis. Acabaram virando instrumento para uma disputa de quem venderá mais [matrículas]”, afirma Luiz Aguilar, da Unicamp.

“Precisamos aprimorar os conceitos para saber o que, de fato, os egressos dos cursos aprenderam.”

Ele faz uma analogia para mostrar a fragilidade do CPC: é como se uma turma inteira fosse fazer uma prova importante já sabendo exatamente o que vai ser cobrado nela. A probabilidade de notas altas vai ser muito maior (e mascarará o real nível de conhecimento da classe).

“O MEC precisa criar mecanismos mais dinâmicos para impedir que esses dados sejam maquiados.”

Ivan Gontijo, do Todos Pela Educação, cita possibilidades de burlar o CPC. “Uma universidade que tenha ido mal no Enade pode contratar mais professores com doutorado, por exemplo, para tentar compensar na nota final.”

Barbosa, da Unesp, complementa:

“A gente sabe que existem artimanhas, como só colocar os melhores alunos para prestar o Enade. Tudo para conseguir um conceito melhor e depois vender matrículas. É a lógica de mercado: o aluno virou um consumidor. Quanto mais aluno, mais lucro. A educação atualmente é uma mercadoria.”

Danilo, por exemplo, já se formou, mas continua recebendo ligações de telemarketing das faculdades.

“Explico que já terminei o curso, aí tentam me encaixar em outra coisa, como se a formação não fosse uma escolha minha.”

Alternativas

Como garantir que os cursos de pedagogia tenham mais qualidade? Veja alternativas propostas pelos entrevistados:

  • investir mais no Pibid (o programa que insere os alunos de licenciatura no mercado, por meio de bolsas);
  • calibrar o Enade, melhorar o cálculo do CPC e do CC e fechar mais rapidamente os cursos considerados insatisfatórios;
  • condicionar bolsas do Prouni e do Fies, que são interessantes para as instituições de ensino, apenas às que ofertarem também a modalidade presencial, não só a EAD;
  • apoiar as universidades na implementação das diretrizes do MEC para o curso;
  • criar um exame nacional para ingresso na carreira docente: a ideia é implementar uma espécie de Enem ou de exame da OAB para professores. Depois de formados, os alunos prestam a prova e, com a nota que obtiverem, podem ser selecionados para vagas no Brasil inteiro. Isso economizaria dinheiro (dispensaria os milhares de concursos públicos) e ajudaria a mensurar quantos são aprovados em cada instituição. Seria um termômetro para medir a qualidade das faculdades.

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