Emanoel Araújo era genial e genioso

Diretor do Museu Afro Brasil morreu em sua casa em São Paulo, vítima de infarto fulminante; velório será nesta quinta, na instituição

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  • Ronaldo Jacobina

Publicado em 7 de setembro de 2022 às 17:25

- Atualizado há um ano

. Crédito: divulgação

Nos últimos meses, o artista plástico Emanoel Araújo percorreu diversas instituições baianas em busca de obras de valor histórico para compor as duas exposições que celebrariam os 200 anos da Independência do Brasil, programadas para os museus Afro Brasil e Ipiranga, ambos em São Paulo, cidade que o acolheu quando decidiu deixar a Bahia.

A abertura da primeira das duas mostras, ambas curadas por ele, que marcaria também a reinauguração do Museu do Ipiranga, depois de muitos anos em reforma, aconteceu na noite de terça-feira (6) sem a presença do artista. “Ele estava bem, mas como já havia finalizado seu trabalho de curadoria e apresentado ao governador do estado, preferiu ficar em casa para se dedicar aos preparativos do almoço que ofereceria hoje (7) na sua residência aos amigos”, conta um amigo próximo. 

Na madrugada de quarta-feira, exatamente no dia 7 de setembro, o artista sofreu um infarto fulminante. O corpo foi encontrado por um amigo no escritório que ele tinha em sua casa, na Bela Vista, região central de São Paulo, onde morava. O velório está marcado para esta quinta-feira (8), das 9h às 16h, no Museu Afro Brasil, fundado e dirigido por ele. O enterro será às 16h30 no Cemitério da Consolação, na capital paulista. 

A notícia da morte do artista, um dos mais importantes do país, abalou os amigos e o mundo das artes. “Perdemos Emanoel Araújo exatamente no dia 7 de setembro em que comemoramos o bicentenário da nossa independência. O Brasil fica sem um de seus maiores artistas”, lamenta o secretário de Educação do Estado de São Paulo e amigo pessoal do baiano, Hubert Alquéres.

O secretário lembra que Araújo nasceu em outra data cívica: 15 de novembro. “Emanoel sempre amou o que temos de melhor: nosso povo e suas manifestações artísticas. Aguerrido, elevou e divulgou como poucos o Brasil e a cultura do nosso país”, completa.

Um dos artistas mais relevantes do Brasil, Emanoel Araújo nasceu em Santo Amaro da Purificação, em 1940, construiu sua carreira na Bahia, onde dirigiu o Museu de Arte da Bahia, até mudar para a capital paulista, onde ganhou ainda mais reconhecimento como artista e como gestor público à frente de espaços nobres como a Pinacoteca de São Paulo, que inaugurou e dirigiu por muitos anos, até criar o Museu Afro Brasil, no Parque do Ibirapuera, o mais importante espaço museológico do país dedicado à arte afro-americana. Parte do acervo deste museu foi doado pelo próprio artista, que dedicou a vida à pesquisa e tornou-se um dos grandes colecionadores de arte da diáspora africana.

Colega de ginásio de Emanoel Araújo em Santo Amaro, o cantor Caetano Veloso usou suas redes sociais para lamentar a morte do mestre. ”Morreu meu amigo, colega de ginásio, companheiro de adolescência, conterrâneo santamarense, xará, mestre e discípulo, Emanoel Araújo”, escreveu. 

Caetano lembrou que a porta de sua casa em Ondina é guardada por um totem dele, abstrato e sagrado. “Além da obra pessoal, devemos a Emanoel a revitalização da Pinacoteca e a criação do Museu Afro Brasil. Esteve e estará sempre vivo em mim meu amor por ele", concluiu.

O artista e escritor paraense Bené Fonteles, que trabalhou com o escultor, também lamenta a perda do mestre. “Emanoel Araújo é um dos personagens mais importantes de toda a história da cultura e arte no Brasil. Só ele ter criado o Museu Afro-Brasil já o fez de uma grandeza ímpar. Sua obra é fundamental, juntamente com a de Ruben Valentim, para a glória  da arte afro-americana. Ter trabalhado com ele foi uma honra”, diz.

Premiado internacionalmente, Emanoel Araújo tem obras espalhadas pelo mundo em coleções particulares e em museus de cidades como Nova York, Los Angeles, Firenze (Itália), Kansai (Japão), Sidney (Austrália), além de outros países, e dos mais importantes museus brasileiros.

“Emanoel Araújo foi um grande artista e o maior e mais competente gestor de museus. Fará muita falta”, lamenta o galerista Paulo Darzé, que representava o artista na Bahia. Foi na galeria do marchand que Emanoel expôs pela última vez na Bahia, em 2011, com curadoria de Charles Cosac. Em 2019, o artista voltou à Paulo Darzé Galeria para lançar seu último livro “O Universo de Emanoel Araújo, Vida e Obra”.

A declaração de Darzé é endossada pelo ex-diretor do Museu de Arte Moderna da Bahia e presidente do Fundo de Investimentos em Arte Brazil Golden Art, Heitor Reis. “A partida de Emanoel Araújo, um artista genial e maior gestor de museus, é uma grande perda para a cultura brasileira”, opina.  

No peito e na raça Nada aconteceu por acaso na vida de Emanoel Araújo. Negro, baiano e gay, o artista peitou a elite brasileira, especialmente a paulistana, e construiu uma carreira de sucesso graças ao talento como artista e gestor público, mas sobretudo pelo jeito marrento e corajoso de enfrentar as dificuldades e de não se render a ninguém. 

Quando seu nome foi anunciado como diretor da Pinacoteca de São Paulo, a elite paulistana reclamou: “Mas tinha que ser um baiano?”. Ao ouvir o comentário, o baiano complementou: “e preto e homossexual”.

Genioso, não levava um desaforo para casa. Certa feita, quando da inauguração do Museu Nacional de Cultura Afro Brasileira (Muncab), idealizado por ele, disparou para o então ministro da Cultura Juca Ferreira que o interpelou para alertá-lo de que se continuasse falando mal dele que fecharia a torneira para a São Paulo. De pronto, Emanoel disparou: ‘feche, pode fechar, São Paulo não depende do dinheiro de vocês para nada’. A cena, presenciada e publicada por este repórter, rendeu muita polêmica na época. 

E a fama de temperamental e “pitiático” alimentou as rodas de fofocas comuns no mundo das artes. E ele fazia questão de dizer o que pensava, doesse a quem doesse. Depois, empinava o pescoço, levantava a cabeça, sempre coberta com um belo chapéu, e seguia em frente. 

Amigo de muitos e muitos anos, o também artista Justino Marinho, considerado um sujeito tranquilo, costumava sair apaziguando os ”prejuízos” causados pelo “irmão de coração”. Muito abalado, Justino, que falava por telefone com o artista praticamente todos os dias, lembra que às vezes entrava mesmo em cena para consertar alguns arroubos do amigo.  

“Eu contornava as complicações dele (riso), mas ele tinha um coração bom! Recentemente, uma amiga estava em dificuldades financeiras e eu comentei com ele. No dia seguinte ele mandou uma obra dele para ela vender e sair da crise. Ele era assim, temperamental, mas de um coração gigante”, conta.

Foi Emanoel Araújo, na opinião do fotógrafo e artista visual Christian Cravo, o responsável por sua existência. “Não tenho palavras para descrever o meu sentimento. Se eu existo é porque o cupido Emanoel uniu meus pais”, afirma.

Cravo afirma que, para além do afeto e proximidade. que “a admiração pelo gigante artista, provocativo, inteligente, criador do melhor museu do Brasil, o único que conta a nossa verdadeira história, é enorme”. 

Desapego Justino Marinho lembra que há tempos Emanoel já vinha falando em livrar-se de parte das milhares de peças do seu acervo pessoal. “Ele dizia que tinha muitas coisas, que pensava em se desfazer de boa parte delas. Chegou a me pedir para ver um museu local, inclusive o Museu de Arte da Bahia, pelo qual ele tinha grande apreço, para doar 10 telas de Carlos Bastos que tinha em casa, eu estava vendo isso quando fui surpreendido com essa notícia”, conta.

Grande parte do acervo particular de obras afro-americanas do artista já havia sido doada por ele ao Museu Afro Brasil. “Desde os anos 1970, ele colecionava máscaras, esculturas e diversas outras peças trazidas das inúmeras viagens que fez à África. Quando foi para inaugurar o museu, a primeira grande doação que o espaço recebeu foi a dele. É um acervo enorme e de grande importância artística e histórica”, conta Marinho.

Amor e ódio A relação do artista com a Bahia era controversa. Ao tempo em que amava a cultura da sua terra, carregava mágoas. Numa entrevista à revista Muito/A Tarde, concedida a este repórter, quando perguntado o porquê de ter trocado a Bahia por São Paulo, respondeu: “Na Bahia as pessoas pagam 10 para você não ganhar 5”. 

Polêmico, nunca negou uma declaração à imprensa, fosse qual fosse o assunto. Nem quando foi acusado de assédio sexual e moral por ex-funcionários do museu:  “Essa questão de falar sobre assédio está na moda, nem posso imaginar quem são essas pessoas que estão me acusando”. As acusações, postadas nas redes sociais dos acusadores, logo foram retiradas da internet pela justiça a pedido do artista e nada nunca foi provado. 

Mas, para além da figura controversa, Emanoel Araújo foi um lorde. Uma realeza negra que brilhou, com seus ternos bem cortados, e muito talento para as artes plásticas e para a cultura brasileira. Bravo e guerreiro!