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Artigos escritos por colunistas convidados especialmente para O GLOBO.

Por Marco Antônio Sabino*

“Mentiras sinceras me interessam”. Cazuza não poderia ter sido mais feliz. A mentira faz parte do nosso cotidiano, é um fato antropológico e filosófico – que dirá Santo Agostinho, em seu incrível Sobre a Mentira. Para ele, contudo, a mentira é condenável: “Permanece, assim, que nenhum homem bom deve mentir”.

O início oficial da corrida eleitoral, com a profusão de entrevistas, debates e produção de conteúdo pelos candidatos chama a atenção a um fato político que não é estranho a nenhum de nós: candidatos mentem. Como pessoas mentem. A história de pescador? Mentira. As fantasias e gracejos sobre lendas tipicamente contadas no interior de Minas Gerais? Mentira. Voltaire disse: “Posso não concordar com uma só palavra do que dizes, mas lutarei para sempre por seu direito de dizê-las”? Mentira (quem disse a frase foi Evelyn Beatrice Hall). Mas a pergunta que se faz é: mentira é protegida pela liberdade de expressão?

Em certa medida, sim. A mentira contada na mesa de bar, no recôncavo de casa, a mentira que serve para exagerar, para ilustrar, a mentira usada como humor, piada, sátira, ironia ou sarcasmo, essa mentira – parece não haver dúvida – é protegida pela livre manifestação do pensamento. Quem diria que fazer crianças acreditarem no curupira ensejaria resposta e indenização? Alguém teria condenado Orson Welles por ter transmitido, ao vivo, uma invasão alienígena em Guerra dos Mundos? Não foi o que aconteceu. No primeiro caso, trata-se de cultura; no segundo, de arte. Ambos, porém, têm como pano de fundo a mentira (embora deva ter gente que acredite piamente no curupira).

Em outra medida, a mentira caracteriza abuso de expressão. É o caso da mentira contada por mandatários do povo ou postulantes a tais – como, por exemplo, candidatos a cargos políticos. Se todo o poder emana do povo, como estampado na Constituição, os mandatários cumprem sua função em nome do mandante, que é o povo. Dessa forma, mandatários são accountable por aquilo que falam, pregam, vociferam, sustentam. O dever de prestar contas ao povo, fonte original de seu poder, inibe manifestações mentirosas por parte desses mandatários. E esse dever de falar a verdade também se estende aos postulantes a cargos públicos. No caso sob análise, candidatos nos pleitos eleitorais, que não apenas se submetem ao dever moral de falar a verdade, mas, também, ao legal.

Há pelo menos mais um fundamento a sustentar a tese: políticos como presidentes, governadores, prefeitos e congressistas têm a seu favor o uso do argumento de autoridade. Esse argumento gera no destinatário da mensagem a presunção de que tudo o que é declarado por esses políticos é verdade. De fato, tais pessoas inspiram uma natural confiança no povo, e a mentira é a traição covarde dessa legítima e inerente confiança. Em pelo menos uma ocasião, inclusive, o discurso – pelo menos – exagerado gerou responsabilidade. E a própria autoridade inibe o espírito crítico e desconfiado do eleitor que, acreditando em seu candidato, busca vieses de confirmação a fim de justificar sua escolha – admitindo, assim, mentiras contadas por ele.

O Tribunal de Justiça de São Paulo determinou à Prefeitura a criação de 150.000 vagas em creches até 2016, conforme prometido em campanha pelo candidato que, depois, tornou-se prefeito. A partir desse paradigma, mentiras e, principalmente, falsas promessas geram responsabilidade, precisamente porque a confiança do povo é traída nessas ocasiões.

Por isso, candidatas e candidatos, atenção: sentarem-se em bancadas de telejornais e em programas de rádio e apresentar mentiras não é, apenas, moralmente censurável, mas é ilegal, porque viola o direito de todos à informação, a moralidade e a publicidade (princípios da Administração Pública). Não há liberdade de expressão para mentiras propaladas por candidatos. Não usem o espaço público e a oportunidade que têm como se fosse uma mesa de bar com amigos.

*Marco Antônio da Costa Sabino é doutor em Direito pela Universidade de São Paulo (USP), pós-doutor em Democracia e Direitos Humanos pela Universidade de Coimbra,.pesquisador do Global Freedom of Expression, da Universidade de Columbia, foi Academic Visitor na Universidade de Oxford, professor da FIA e do IBMEC e sócio do escritório Mannrich e Vasconcelos

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